De abalar as estruturas: conheça o Movimento Bem Maior

Richard Sippli, Diretor de Operações do Movimento Bem Maior, conta como a organização busca fortalecer a cultura de doação no Brasil.

Por Nathalia Ribeiro em 17 de abril de 2024 8 minutos de leitura

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Richard Sippli (Foto: Divulgação)

É filantropia. Cidadania ativa. Mas também é um trabalho focado em mudar as estruturas sistêmicas do País. Não à toa, seu nome é Movimento Bem Maior (MBM). Da preservação ambiental ao desenvolvimento comunitário e à inovação social, a organização formada por 11 associados, principalmente, pessoas físicas, é fonte de suporte e orientação para as Organizações da Sociedade Civil em todo o Brasil, compromissadas com o avanço dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Por meio do apoio a pesquisas e da participação ativa em debates e ações estratégicas para o País, busca mudar as regras do jogo em prol de justiça social.

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Foi assim que a organização teve importante papel na Reforma Tributária aprovada em dezembro do ano passado, que isenta o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) de doações a entidades sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos – uma alíquota de 2% a 8%, como lembra o diretor de operações e relações institucionais, Richard Sippli, em entrevista ao Habitability. “Essa mudança representa uma significativa economia para todas as organizações do País, podendo reduzir seus encargos financeiros em até 8%. Embora não possamos reivindicar diretamente esses resultados, dada a complexidade envolvida, acredito firmemente que contribuímos de maneira significativa para esse desfecho”.

Guiado pelo propósito de impactar positivamente a vida das pessoas, ele integra o grupo que tem entre suas missões ampliar o impacto das doações no PIB brasileiro, já demonstrado em pesquisa, abrangendo todos os setores da sociedade, especialmente as focadas na erradicação da pobreza, na redução das desigualdades e no fortalecimento de parcerias e mecanismos de implementação. “Queremos desenvolver o campo da filantropia no Brasil, fortalecendo a cultura de doação. A ideia é trabalhar em direção à justiça social, entendendo que a filantropia é um instrumento relevante para enfrentar os diversos desafios sociais de maneira eficiente”, conta Sippli. 

Mudanças de base

Com uma história marcada por desafios e conquistas, o Brasil conta com uma ampla rede de organizações filantrópicas, que atuam em diversas áreas, desde educação e saúde até meio ambiente e desenvolvimento comunitário. Grande parte desses recursos e esforços são direcionados para organizações que operam na linha de frente, lidando com questões urgentes e emergenciais. 

No entanto, o Movimento Bem Maior adota uma abordagem distinta ao direcionar seus esforços também ao desenvolvimento da infraestrutura de suporte. “Buscamos fortalecer as bases que sustentam toda a rede filantrópica no Brasil. Para isso, promovemos a articulação de uma ampla gama de parceiros, estimulando o diálogo intra e intersetorial, além de apoiarmos iniciativas como advocacia”, explica Sippli.

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Equipe do Movimento Bem Maior (Foto: Divulgação/MBM)

Essa advocacia é realizada por meio de financiamento e pesquisas destinadas a destacar o potencial do setor filantrópico. Diante da reforma tributária, por exemplo, o MBM identificou questões pertinentes para impulsionar mudanças que beneficiassem todo o ecossistema das organizações sociais do Brasil. “Apoiamos uma pesquisa realizada pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), sobre a contribuição econômica do terceiro setor para o PIB. A pesquisa revelou que cerca de 4,27% do PIB está ligado ao terceiro setor. Esses dados nos forneceram subsídios para abordar a reforma tributária e destacar a relevância do setor. Assim como são concedidos incentivos para setores, como o automobilístico e o rural, é válido considerar o terceiro setor”, observa ele.

Laboratório do bem

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Equipe MBM em visita ao Instituto Baccarelli (Foto: Reprodução/ MBM via LinkedIn)

Testar novas iniciativas é um desafio no poder público. A complexidade sistêmica, aversão ao risco e burocracias inviabilizam a adoção de práticas inovadoras. É aí que reside mais um papel estratégico da filantropia: ser um agente de capital de risco, possibilitando a experimentação e validação de novos modelos. Como explica Sippli, “a filantropia tem liberdade e flexibilidade para testar e validar abordagens, facilitando a adoção posterior pelo poder público, pois, dessa forma, o governo pode implementar iniciativas com mais segurança, já validadas”. No entanto, ressalta ele, “a filantropia não deve ser vista como uma substituta das responsabilidades governamentais, mas como uma complementação, promovendo um engajamento ativo dos cidadãos na sociedade”.

Impulsionando o potencial invisível

Embora o MBM invista em grandes organizações, uma das estratégias é focar seus investimentos em iniciativas e organizações que não costumam ter grande destaque, mas que impactam positivamente o seu entorno, com o potencial de abrir novos horizontes. “Nosso enfoque é no desenvolvimento institucional delas. Não executamos projetos específicos, mas entendemos a importância da organização e a apoiamos em seu processo de crescimento e desenvolvimento. Isso inclui oferecer recursos que não são “carimbados” (termo usado para designar os recursos que devem ser utilizados exclusivamente para os fins previamente definidos), que é uma prática muito comum no mercado, mas acaba limitando o uso dos recursos, por exemplo, para pagamento de folha de salários”, disse. 

Segundo o executivo, essa abordagem evita tais limitações, que restringem a capacidade das organizações de responderem de forma ágil às demandas emergenciais ou adaptarem suas estratégias conforme maior necessidade. Oferecer recursos flexíveis permite que as organizações realizem investimentos não apenas para atender às necessidades imediatas, mas também para promover capacitação e desenvolvimento institucional no longo prazo.

“Nossos contratos têm duração de três anos, o que proporciona mais estabilidade e um desenvolvimento contínuo. Embora reconheçamos que três anos ainda é um período relativamente curto, estamos em constante processo de evolução”, ressalta. O monitoramento por meio de indicadores-chave de desempenho é uma ferramenta estratégica para contribuir com esse processo de consolidação.

A prática da escuta ativa é outro pilar fundamental, permitindo uma compreensão aprofundada dos desafios enfrentados por cada entidade. “Realizamos pesquisas para entender melhor a relação delas conosco, sempre de forma anônima, abordando aspectos como nosso papel, a comunicação e se estamos demandando muito trabalho. Nosso objetivo é impulsionar e catalisar o desenvolvimento das organizações, sem gerar burocracia ou amarrá-las às nossas agendas”, salienta. 

Futuro bem maior, do micro ao macro

Com o propósito de beneficiar essas comunidades, a organização desenvolveu o programa Futuro Bem Maior, centrado no fortalecimento de organizações de base comunitária, incluindo coletivos, além das organizações formalizadas. “A seleção é feita por meio de um edital aberto em todo o Brasil, com ênfase em áreas fora dos grandes centros urbanos”, explica Sippli. As iniciativas selecionadas têm o suporte do Movimento Bem Maior por dois anos, a fim de capacitá-las e fortalecê-las, potencializando seus impactos nas comunidades.

Para organizações de maior porte, os esforços estão concentrados em áreas-chave, com destaque para a educação e a inclusão produtiva. Essas iniciativas representam um passo em direção a um escopo mais amplo de atuação, transitando do micro para o macro. Trata-se agora de apoiar organizações que não apenas implementam, mas também pilotam e aprimoram políticas públicas relevantes. Geralmente, são entidades robustas, com presença em múltiplos estados e municípios, e que possuem uma articulação eficiente para dialogar com as instâncias governamentais. 

“A escolha de focar em educação e inclusão produtiva é estratégica, especialmente diante do contexto atual, onde questões como a implementação do novo ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular ganham destaque. Dessa forma, o Movimento Bem Maior busca alinhar suas ações com desafios e oportunidades que promovam um impacto duradouro”, destaca o diretor de operações.

Nos investimentos em educação, o timing e a relevância da inclusão produtiva são premissas, especialmente diante do alto índice de desemprego e dos efeitos em cascata que isso acarreta nas famílias e na sociedade em geral. Essa abordagem transcende o aspecto econômico e se estende a três eixos transversais: equidade de gênero, equidade racial e a questão climática.

“Reconhecemos que cada causa demanda ações intencionais e propositivas, visto que esses temas são distintos e necessitam de tratamentos específicos. Assim, ao falarmos de inclusão produtiva, é preciso adotar abordagens diferenciadas que levem em conta essas questões. Essas diretrizes são orientadas tanto por indicações externas quanto pela busca ativa, e também pela iniciativa das próprias organizações que nos procuram em busca de apoio”, comenta ele.

A fórmula tem tido sucesso, como lembra Sippli. “Algumas organizações que passaram pelo Movimento logo no início, ao longo do tempo, saíram de um orçamento anual de até R$ 500 mil para receitas superiores a R$ 3 milhões”. Esse crescimento evidencia o impacto positivo e a crescente estruturação dessas iniciativas”, orgulha-se. A “Gerando Falcões”, uma ONG de desenvolvimento social que nasceu na favela, e o movimento “Todos Pela Educação”, reconhecido por seu trabalho de advocacia e por sua contribuição para avanços na educação, incluindo diálogos diretos com o Ministério da Educação (MEC) são outros exemplos que receberam apoio financeiro e institucional do MBM. 

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Nutrindo o futuro

Curso de gastronomia sustentável do Sementes em Movimento (Foto: Reprodução/Instagram)

Iniciativas de segurança alimentar também fazem parte do escopo do MBM. Em um cenário em que 21 milhões de pessoas não têm o que comer todos os dias no Brasil e 70,3 milhões se encontram em insegurança alimentar, o trabalho de organizações da sociedade civil se torna essencial. Institutos como Ecom-Amor, em Goiânia, Sementes em Movimento, no Rio de Janeiro, e Instituto Novo Sertão, no Piauí, já foram contemplados pela colaboração do MBM. 

“Desde o início da pandemia, nossa organização tem mantido uma relação próxima com a Ação da Cidadania, uma instituição dedicada ao combate à fome. Para nós, essa é uma causa essencial, pois entendemos que a fome é uma questão fundamental que impacta diretamente outros aspectos da vida. Não faz sentido discutir sobre educação, saúde ou emprego quando há uma parcela significativa da população sofrendo de barriga vazia”, destaca.

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Os desafios são muitos, mas as oportunidades também

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Classificado em 2022 entre os 20 países mais generosos do mundo, o Brasil ocupa atualmente o 89º lugar no World Giving Index de 2023. A queda é reflexo de todos os indicadores avaliados, como o que mede as doações destinadas a ONGs, que caiu de 41% para 26%.

Os dados evidenciam os desafios, que vão de questões estruturais a culturais. “A cultura de doação e o conhecimento sobre o papel das organizações sociais enfrentam muitos obstáculos, com estigmas, preconceitos e desconfianças. Para avançar, é fundamental esclarecer que doação não se resume à caridade. A filantropia transcende o assistencialismo e as respostas emergenciais. Embora sejam igualmente importantes e necessárias, estas compõem apenas uma parte do amplo espectro de atuação das organizações sociais e da filantropia”, observa. 

“Olhando para o médio e longo prazos, o papel da filantropia é mais abrangente, envolvendo parcerias estratégicas tanto com o setor público quanto com o privado. Este é um terreno vasto e fértil para exploração. Ainda estamos nos estágios iniciais de compreensão e atuação”, diz ele. 

Embora essa cultura filantrópica não tenha alcançado os níveis observados em outros países, por falta de ambiente propício e incentivos, a visão de Sippli é otimista. “O Brasil tem poucos incentivos fiscais se comparado a outros países, mas a remoção do ITCMD representa um grande avanço. O setor está se estruturando e se fortalecendo, conectando-se em uma rede mais coesa capaz de grandes transformações”.