Política habitacional e setor forte podem combater o déficit com mais eficiência

A economista Ana Maria Castelo, da FGV Ibre, mostra a representatividade da construção imobiliária e destaca o peso da inflação da matéria prima no setor

Por Redação em 11 de outubro de 2021 7 minutos de leitura

entrevista ana maria castelo

Atualmente, as empresas formais respondem por 57% do setor de edificações da construção civil. Os 43% restantes estão a cargo da autoconstrução e da autogestão (proprietários de imóveis, pequenos empreiteiros e afins), considerados uns dos grandes responsáveis pelos números positivos do setor desde 2019. Neste momento, para todos eles, os custos da matéria prima (materiais de construção) são os maiores impeditivos de crescimento. Esse item ultrapassou até mesmo a falta de demanda, que há poucos meses figurava como o principal vilão do mercado em decorrência das sucessivas crises políticas e econômicas. A informação é de Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos de construção do FGV Ibre.

Nesta entrevista exclusiva ao Habitability, ela lembra como este cenário foi estabelecido, avalia as condições de crescimento do mercado imobiliário e da construção como um todo e pontua que o déficit habitacional brasileiro pode ser melhor atacado com política habitacional em conjunto com a eficiência e responsabilidade do mercado corporativo. Acompanhe.

Qual é o déficit e como a política habitacional pode influenciar positivamente na construção de novos empreendimentos?

A Fundação João Pinheiro divulgou uma revisão da metodologia de cálculo para o déficit habitacional e chegou ao número de 5.876.699 (mais de 5,8 milhões) em 2019. Este é o número mais recente que temos e, se compararmos com 2016, há um pequeno acréscimo, de 4%, o que não é tão expressivo, pois acompanha o crescimento da população. Ou seja, temos mantido estável o déficit habitacional. E isso é ruim, pois deveríamos combatê-lo. Mas, para isso, é preciso entender como o déficit é composto.

Na metodologia da Fundação João Pinheiro estão incluídas no déficit as famílias com ônus excessivo com aluguel. Isso se refere a famílias nas quais o pagamento de aluguel representa mais de um terço da renda. Essa faixa responde por mais da metade do déficit e tem encontrado cada vez mais dificuldade para adquirir a casa própria sem auxílio (subsídio) do governo.

A política habitacional do Casa Verde e Amarela não cumpre esse papel?

Hoje, o programa está muito amarrado pelas questões fiscais, que praticamente inviabilizam investimentos de grande porte e nos deixa claro que a política pública é fundamental como estímulo à atividade econômica, principalmente em setores como o da construção civil, onde o setor privado não consegue, sozinho, substituir os investimentos necessários.

Durante a política habitacional do Minha Casa Minha Vida, apesar das críticas e problemas, que foram muitos, houve o grande mérito de produzir formalmente habitação para famílias de menor renda. E isso foi feito com financiamento do FGTS a taxas mais baixas e com subsídio. Se não for assim, não dá para tirar uma parcela importante das famílias do déficit habitacional. Estamos falando de um perfil de renda no qual se tem cerca de 20% das famílias ganhando até um salário mínimo. Se não houver subsídio, não adianta ampliar a linha de crédito, pois quem deveria ter acesso, não terá o suficiente para a aquisição de imóvel.

Quais foram os problemas da política habitacional do Minha Casa Minha Vida?

O principal foi limitar o programa a apenas ao modelo de produção habitacional com a aquisição da unidade. Poderiam ter outras opções, como o aluguel social e a regularização fundiária. O Casa Verde e Amarela incorpora a regularização fundiária, como uma melhoria conceitual importante.

Quanto o setor imobiliário representa no setor de construção e como está dividido isso?

Em números de 2019, que acabaram de ser divulgados pelo IBGE, as edificações, onde se incluem construções de edifícios residenciais, não residenciais e incorporações, representaram 41% da atividade da construção. Em seguida vem a infraestrutura, incluindo obras viárias, obras de arte (pontes, viadutos e galerias), obras de infraestrutura elétrica, de telecomunicações e de saneamento básico, com 31%. O terceiro e último setor é o de serviços especializados, com 28%. Esse é bastante peculiar, pois se refere a negócios que atendem a própria construção civil, como fundações, terraplenagem, acabamento, instalações elétricas, hidráulicas e de ar condicionado.

Em março deste ano, um artigo seu apontou que o custo da matéria-prima limitava a melhoria dos negócios para quase um terço das empresas da construção. Esse cenário mudou?

Piorou. Em agosto, a Sondagem da Construção da FGV Ibre levantou que o custo da matéria prima é o principal limitador de negócios para 40% das empresas de construção do Brasil. Esse índice é recorde, mas a questão assumiu a primeira posição no ranking de “fatores limitadores da melhoria dos negócios” desde junho deste ano, mostrando o quanto o preço da matéria prima está impactando as empresas ao provocar instabilidade orçamentária e outras variáveis.

Especificamente no setor de edificações, onde estão as empresas do mercado imobiliário, houve uma leve redução em agosto em relação ao mês anterior. Mesmo assim, o custo da matéria prima é o fator prejudicial mais apontado por 34% das empresas do segmento e também é o item mais limitador entre todos os avaliados.

E quando começou essa guinada dos custos? 

No segundo semestre de 2020. Somente entre agosto e setembro do ano passado, a quantidade de empresas do setor de edificações que apontaram o custo da matéria prima como sendo o maior limitador dos seus negócios saltou de 6,7% para 17,8%. Isso foi um ponto de inflexão, pois nos últimos anos, o principal fator era a falta de demanda, o que refletiu a retração que o mercado da construção sofreu em função das seguidas crises políticas e econômicas desde 2015.

O preço da matéria prima veio se consolidando como vilã desde então e, nos últimos três meses (junho-agosto) assumiu protagonismo, ultrapassando o problema da demanda, que ainda continua importante e sendo citada por 31% das empresas do setor.

Como isso ocorreu?

Precisamos recapitular: no início da pandemia, quando achamos que retornaríamos ao nosso cotidiano anterior em poucos meses, houve fechamento de estabelecimentos e de atividades industriais. Isso impactou a oferta de maneira geral, mas o setor da construção – incluindo os comércios (depósitos e lar centers) – foi classificado como atividade essencial. Em casa, as famílias deixaram de ter despesas com vários serviços, como transporte, restaurantes, etc. O home office também abriu a percepção da classe média para a necessidade de reformas em seus lares, muitas vezes para melhor adequar a própria estação de trabalho remoto. Em paralelo, tivemos o Auxílio Emergencial, que foi a reposição de renda básica para a maioria das famílias, mas também foi uma renda extra para outras, que puderam investir em suas construções.

Tudo isso levou as vendas de materiais de construção a níveis recordes, segundo a série histórica do IBGE. Ocorre que a produção industrial, que foi extremamente afetada no início da pandemia com desligamento de fornos na indústria cimenteira, caldeirarias siderúrgicas, etc, não se recuperou na mesma velocidade, pressionando a oferta e a demanda e se configurando como um dos elementos que causaram a alta dos preços. Outros elementos inflacionários do setor foram a desvalorização cambial e o aumento do preço das commodities metálicas. 

Desde quando a produção deu sinal de recuperação e como ela se comportou no acumulado de 2020?

Já a partir do segundo semestre do ano passado, a produção começou a se recuperar e, pelos números do IBGE, fechou 2020 estável (-0,20%). Mas isso não se compara ao desempenho das vendas, que fechou o ano com 11% de crescimento, comprovando que o aquecimento da demanda foi maior do que a capacidade de produção para a oferta, o que culminou no aumento de preços.

Qual cenário você prevê para os próximos meses?

Os estoques da produção industrial ainda estão baixos e as construtoras continuam relatando escassez de material, além do custo elevado. Para se ter ideia, há empresas contratando insumos com 12 meses de antecedência, o que demonstra o cenário de imprevisibilidade. Então, respondendo a sua pergunta de forma bem direta: é imprevisível.

Por outro lado, considerando toda a demanda do mercado, avaliando a movimentação do setor imobiliário nos 12 meses do ano conjuntamente e somando as movimentações de infraestrutura, que tendem a crescer, podemos sim ter uma dinâmica positiva do mercado de construção nos próximos períodos.

De modo um pouco mais amplo, porém, digo que o cenário ainda não normalizou e, para pensar num futuro, mesmo que próximo, há diversas questões, entre elas a demanda por materiais de construção por parte das famílias. Hoje, o cenário é surpreendentemente positivo, pois esperava-se que neste ano haveria arrefecimento da demanda em função da subida dos preços e da própria inflação. Até houve, mas foi pouco. Porém, nada impede que isso seja acelerado nos próximos meses. 

Então a infraestrutura tende a ampliar a participação nos números gerais da construção…

Sim. Os investimentos em infraestrutura, em função de todo o contexto político e econômico, reduziram muito do lado estatal e o setor privado não conseguiu suprir. Isso nos deixou com um volume de investimentos aquém do necessário apenas para suprir a depreciação do estoque, quem dirá para melhorar a qualidade da infraestrutura. Mesmo com esse contexto, sabemos que os anos eleitorais sempre representam um fator de estímulo nessa área. No ano passado isso já se comprovou, com os pleitos municipais. Até outubro de 2020, quando ocorreram as eleições, a infraestrutura esteve à frente do setor produtivo na quantidade de contratos de trabalho, o que comprova essa lógica. Isto deve se repetir até o ano que vem. Também, tivemos as concessões de aeroportos, saneamento básico e outras áreas e esses investimentos devem começar a ocorrer no ano que vem, devendo ser mais um acelerador da infraestrutura.

Esses movimentos da infraestrutura e do próprio mercado de edificações devem nos levar a novos patamares no setor da construção?

Não estamos falando de um boom que nos retorne a patamares de 2012/2013. É preciso deixar claro que o mercado encolheu muito e temos uma deficiência grande de investimentos ainda. Mas visualizamos sim um cenário positivo em relação aos últimos cinco anos.

O setor está sólido o suficiente para isso?

Apesar do impacto que efetivamente ocorreu sobre a atividade econômica com a pandemia, o setor de construção conseguiu mostrar uma resiliência importante, tanto no mercado informal, de autoconstrução, quanto no mercado formal, com as empresas se organizando para atender os protocolos de segurança e conseguir trabalhar com um desempenho surpreendente. Mas tem uma questão importante nisso, que é a concentração nos grandes centros. Avaliando isoladamente, percebemos que quem puxa esse momento positivo são as metrópoles como São Paulo, Brasília e RJ. Nos interiores, principalmente no Nordeste, o mercado continua muito fraco. Então, o desempenho atual, infelizmente, promove desigualdade e esperamos que isso retome um sentido de equilíbrio para a política habitacional ainda a partir deste segundo semestre de 2021.

A subida da taxa de juros e a própria inflação – com destaque para os preços dos materiais de construção – podem impedir esse movimento?

Como disse antes, é tudo imprevisível ainda. A construção civil tem um ciclo, pois, à medida que temos lançamentos e vendas bem sucedidas, isso se retroalimenta com uma boa política habitacional. Porém, há fatores externos, como o próprio cenário macroeconômico, que podem influenciar ainda mais nas taxas de juros e no próprio setor da construção. Atualmente, porém, mesmo com a reversão da taxa de juros, continuamos percebendo sinalização de expansão de crédito. Também temos uma boa sinalização do mercado imobiliário, com indicações positivas de investimentos, o que deve fazer com que fechemos 2021 com números melhores do que os de 2020, que já foram positivos.

Para a política habitacional, quais atenções são importantes para que o mercado aproveite este bom momento?

Não há como pensar em crescimento sustentável sem promover crescimento da renda e do mercado do trabalho. Se a economia não ganhar força, esse movimento positivo que estamos vivendo do mercado imobiliário, mesmo com boa política habitacional, não se sustentará sozinho. É sempre bom lembrar que, no Brasil, a maior parcela da população é de renda baixa e precisa de subsídio para moradia. Hoje, isso está bem limitado.

Se olharmos um pouco para trás, no ciclo de 2008 a 2013, o setor teve um boom devido a uma conjunção de fatores, que somaram a força do mercado e a força da política habitacional.

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