“Precisamos adotar novas práticas que sejam mais justas e sustentáveis” diz Helena Ruette

A arquiteta está transformando a prática arquitetônica ao integrar princípios biomiméticos, da permacultura e materiais ecológicos, como o bambu.

Por Nathalia Ribeiro em 7 de agosto de 2024 12 minutos de leitura

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Helena Ruette (Foto: Divulgação)

Ao longo da história, a arquitetura tem seguido fórmulas e convenções que, embora funcionais, muitas vezes desconsideram a sabedoria da natureza. A natureza, com sua habilidade de adaptação e eficiência, pode ensinar muito sobre como construir de maneira mais inteligente e mais econômica. Ao estudar como os organismos vivos resolvem problemas de forma otimizada e sustentável é possível reinventar a arquitetura, incorporando esses princípios naturais. Isso permite criar projetos que combinam funcionalidade com respeito ao meio ambiente, resultando em construções mais equilibradas e eficientes. Essa é a visão da jovem arquiteta Helena Ruette.

Formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especializada em construção com bambu e materiais ecológicos. Sua trajetória é marcada pela inovação e pela sustentabilidade, motivada pela busca por métodos mais naturais e eficientes de projetar. 

Helena tem se destacado pelo seu trabalho na promoção do uso do bambu na arquitetura. Para ela, o uso de materiais ecológicos, especialmente o bambu, como uma alternativa com menor impacto ambiental. 

Em entrevista ao Habitability, Helena discute como a arquitetura pode unir eficiência e responsabilidade ao integrar conceitos de biomimética, paramétrica e materiais ecológicos, promovendo um futuro mais sustentável. Ela também explora como a ecologia transcende o meio ambiente, abrangendo aspectos sociais e buscando a equidade, contribuindo também para a justiça social e a qualidade de vida.

Como você começou a se interessar por construção ecológica e arquitetura sustentável?

Helena Ruette: Durante a faculdade me senti muito entediada com o foco excessivo em concreto. Fiz cursos de permacultura e comecei a trabalhar em um escritório chamado Arquitetura Mixta. Descobri que era possível me inspirar nas formas naturais para criar uma arquitetura mais sustentável. Foi, então, que comecei a aprender e praticar meu trabalho com biomimética e arquitetura em bambu. Foi nessa época, observando construções biomiméticas na Colômbia e depois no México, que comecei a desenvolver projetos dessa forma, cruzando também com a parametria.

Eu vi que existe uma outra abordagem, um outro fazer arquitetônico, onde podemos nos inspirar nas formas naturais. A lógica do quadrado e do retângulo apresenta uma série de problemas. Por exemplo, frequentemente criamos vigas de concreto quadradas gigantescas com arcos metálicos dentro delas. Se o arco já resolve os problemas estruturais, por que não trabalhar diretamente com ele? Quando comecei a pensar criticamente sobre isso, percebi que gastamos muito mais material do que precisamos e isso está relacionado à forma como fazemos arquitetura e aos materiais que usamos. 

Comecei a estudar arquitetos como Sérgio Ferro, que falava sobre a experimentação no canteiro de obras, o conceito “canteiro-escola”. Percebi que estávamos fazendo algo errado, seguindo fórmulas preestabelecidas sem refletir. Construímos casas em forma de caixas quadradas que não nos impactam emocionalmente. Essa frustração não é só minha, mas também de muitos colegas profissionais e do mercado em geral. Há algo além disso e eu descobri que podemos trabalhar de uma maneira mais inspirada e eficiente, conectando arquitetura com as formas naturais e buscando uma construção mais sustentável e significativa.

Como esses estudos e a influência de arquitetos como Sérgio Ferro ajudaram você a perceber as limitações da arquitetura tradicional?

Helena Ruette: Existia todo um movimento biomimético dentro da arquitetura no mundo, que utiliza materiais naturais e uma forma diferente de projetar com parametria. Isso significa usar parâmetros naturais para criar uma arquitetura que faz muito mais sentido, inclusive para quem trabalha no canteiro de obras. Quando você está no canteiro como mestre de obras, muitas vezes é obrigado a realizar apenas uma atividade repetitiva, o que pode levar a uma perda de sentido no trabalho.

Por outro lado, se você é um mestre de obras especializado em resolver problemas complexos e conhece bem as particularidades dos materiais naturais, o trabalho se torna mais interessante e significativo. Isso envolve não apenas saber lidar com os materiais, mas também ser capaz de enfrentar e resolver os desafios únicos que surgem.

De que modo a sua experiência pessoal, combinada com a crescente urgência das questões climáticas, moldou sua decisão de explorar alternativas como a bioconstrução, em vez de seguir com métodos tradicionais?

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Foto: Reprodução/Instagram (@helena.ruette)

Helena Ruette: Do ponto de vista da concepção e do projeto, construir com formas mais orgânicas é muito mais interessante. Observando a natureza, percebi que ela oferece respostas valiosas, pois evoluiu ao longo de milhares de anos e seus corpos funcionam eficientemente por meio de experimentação natural. A natureza utiliza a menor quantidade de material possível para criar formas extremamente eficazes, o que serve de inspiração para nós.

Fiquei me perguntando por que não aprendemos isso na faculdade. Como não é abordado que podemos nos inspirar em elementos que têm centenas de milhares de anos de evolução em suas formas? A estrutura da casca, por exemplo, é muito mais eficiente do que um quadrado. O uso de quadrados exige mais material, resulta em mais peso e gera um impacto ambiental maior. Ao optar por essa forma, criamos uma série de problemas, e mesmo assim, continuamos a utilizá-la. Isso revela uma abstração total do verdadeiro significado e da eficiência dos nossos projetos.

Durante a faculdade, pude perceber isso através da teoria e do pensamento crítico que me foram apresentados. Comecei a questionar se estava realmente valendo a pena seguir esse caminho e decidi explorar alternativas, como o uso de materiais naturais. Vivemos em um mundo em crise climática, e embora em 2012 esse tema não fosse discutido com a intensidade de hoje, todos que estavam atentos à questão já percebiam a urgência. 

Naquela época, havia apenas uma menção ao tema, mas hoje entendemos que não é apenas uma opção estética ou uma questão de preferência, mas uma verdadeira necessidade. Trabalhar com bioconstrução é aproveitar a inteligência da natureza para reduzir a quantidade de materiais utilizados, simplificar os processos de construção e promover um ambiente mais saudável e agradável para todos os envolvidos.

O bambu é um material bastante presente em seus projetos. Quais são as vantagens desse material em comparação a outros mais tradicionais?

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Foto: Reprodução/Instagram (@helena.ruette)

Helena Ruette: O bambu é incrível. Quanto mais estudo, mais ele me fascina. O bambu cresce em todas as zonas tropicais do mundo, que é uma área bastante ampla, e é justamente nessas regiões que encontramos algumas das populações mais pobres.

Embora seja um material natural, o bambu possui uma resistência comparável ao aço, especialmente em termos de tração e compressão. Se projetado corretamente, o bambu pode ter uma durabilidade impressionante, com construções podendo durar 50, 60 até 70 anos, e há até exemplos de casas de bambu que duram 100, 150 anos.

Foto: Reprodução/Instagram (@helena.ruette)

Então eu tenho um material natural com uma resistência impressionante, que cresce rapidamente e não exige o corte de árvores centenárias, já que o bambu está pronto para uso em apenas cinco anos. Ele cresce de forma similar à grama. Em países como a China, o bambu é usado para tudo: desde comida e roupas até papel, construções e andaimes. Na Colômbia e em outros países, o uso do bambu é igualmente comum. No Brasil, estamos perdendo tempo, pois temos um recurso valioso em mãos. Há até um livro chamado Bamboo: The Gift of the Gods [Bambu: O Presente dos Deuses, em tradução livre] que explora essas qualidades do bambu. 

É como se estivéssemos sempre em busca de criar materiais novos e complexos, enquanto o que precisamos já está ao nosso lado. No passado, por exemplo, em São Paulo na década de 1960, a construção era majoritariamente feita com terra. Se tivéssemos investido na melhoria de tecnologias renováveis e sustentáveis em vez de na indústria do concreto, teríamos hoje materiais extremamente resistentes e naturais.

Pode compartilhar algum projeto em que o uso do bambu teve um impacto significativo na sustentabilidade e na estética da construção?

Restaurante para o parque urbano em Campo Limpo Paulista (Foto: Reprodução/Instagram – @helena.ruette)

Helena Ruette: Estamos desenvolvendo tecnologia com bambu em cada projeto. Atualmente, estou envolvida em uma obra para a prefeitura, onde criei nove projetos para um parque urbano. Acredito que será o primeiro parque urbano de bambu do Brasil, o que é muito emocionante. O parque está localizado no Campo Limpo Paulista e a inauguração está prevista para breve, pois a obra está em andamento.

Para esse projeto, desenvolvemos diversos tipos de encaixes e arranques inovadores que não existiam antes. É um trabalho contínuo e muito gratificante que envolve engenharia, arquitetura e a equipe de obra, incluindo mão de obra especializada. 

Quais os desafios técnicos e logísticos de trabalhar com bambu?

Helena Ruette: No Brasil, trabalhar com materiais naturais não é simples. Não é como comprar em uma loja, é necessário um profundo entendimento do fornecedor e um trabalho conjunto para desenvolver o produto desejado. Por exemplo, você precisa saber como tratar o material de forma ideal e, muitas vezes, é preciso investir em equipamentos específicos. No caso do bambu, por exemplo, é preciso conversar com o fornecedor, adquirir a máquina necessária e criar o produto em parceria. Atualmente, após muito esforço e negociação, conseguimos estabelecer uma rede de produtores qualificados para atender a projetos, inclusive obras públicas, que exigem materiais de alta qualidade.

Do ponto de vista tecnológico e de construção, estamos constantemente desenvolvendo novas soluções. Desde conexões e fundações até técnicas específicas, tudo é adaptado com base na engenharia e nas normas da ABNT. Trabalhar com materiais naturais, como o bambu, exige ajustes para garantir sua durabilidade e resistência. Um dos principais desafios é a adaptação desses materiais às condições climáticas e à umidade. Materiais naturais não se adaptam bem à água e a intempéries. Para garantir sua longevidade, é necessário tratá-los adequadamente. Isso inclui a aplicação de tratamentos para prevenir brocas e cupins, bem como a elevação do material do chão para evitar a umidade direta.

O desenho arquitetônico deve considerar essas necessidades, prevendo coberturas adequadas para proteger o material e garantir sua durabilidade. Além disso, é importante aplicar uma camada de proteção, como resina de mamona, que é brasileira e ecológica, ou um impermeabilizante como o Stein. Por fim, a manutenção regular é essencial para preservar o material ao longo do tempo.

Mas você costuma trabalhar com algum material tradicional?

Helena Ruette: Sim, trabalhamos com metal, mas em pequenas quantidades, como para abraçadeiras e conexões, e utilizamos concreto apenas para fundações. Não sou contra materiais não naturais, mas acredito que eles devem ser usados de forma adequada. Concreto é excelente para fundações, metal é ideal para conexões, e materiais naturais podem ser utilizados para o restante da construção.

Essa abordagem permite uma composição mais sustentável e saudável, tanto para o ambiente quanto para as pessoas que trabalham na obra. Atualmente, muitos materiais são tóxicos, como o cimento, que exige o uso de máscaras de proteção no canteiro de obras. Portanto, ao usar materiais naturais sempre que possível, contribuímos também para um ambiente de trabalho mais seguro e menos prejudicial à saúde.

Falando em canteiro de obras, como você vê a importância da capacitação e formação de mão de obra especializada para o desenvolvimento da arquitetura biomimética e ecológica no Brasil?

Helena Ruette: Mão de obra especializada é essencial, inclusive, eu ofereço cursos de capacitação também. É um projeto de vida, um processo muito intenso. No Brasil, essa área de arquitetura biomimética ainda não era bem desenvolvida, não existia uma rede estruturada. Há cerca de sete ou oito anos, os primeiros passos foram oferecer muitos cursos. Minha história de dar cursos começou dessa necessidade de treinar pessoas para se tornarem mão de obra especializada, tanto na engenharia quanto no trabalho direto, como mestres de obra e ajudantes.

Hoje em dia, trabalho com uma equipe formada por pessoas que fizeram esses cursos comigo há sete ou oito anos. É muito interessante e gratificante ver como isso cria uma rede de profissionais capacitados e comprometidos com o projeto.

Essas pessoas não trabalham apenas comigo, elas estão espalhadas pelo mercado, o que ajuda a fortalecer todo o setor. Recentemente, um dos fornecedores de bambu que eu trabalho importou uma máquina da China para fabricar ripas, porque a demanda cresceu.

Isso demonstra como alimentar toda uma cadeia produtiva é essencial. Quando falo de arquitetura ecológica no Brasil, com bambu e biomimética, estou falando de uma rede de pessoas e profissionais, além de uma cadeia produtiva que vai muito além do simples trabalho com biomimética. É um processo amplo e integrado.

Qual é o papel da arquitetura na mitigação dos impactos climáticos e como pode contribuir de forma eficaz para a sustentabilidade e a resiliência ambiental?

Fotos: Reprodução/Instagram (@helena.ruette)

Helena Ruette: Quando falamos de criação, o viver no automático e a rotina não favorecem novas ideias. Agora, precisamos ser criativos e flexíveis para encontrar soluções para os novos tempos. Estamos saindo de uma era e entrando em outra, com tecnologia e Inteligência Artificial transformando o mundo. Nossa tarefa é entender como integrar essas inovações no mundo físico.

A arquitetura, nesse contexto, é interessante porque transforma o etéreo em matéria. O desafio é fazer isso de maneira que esteja verdadeiramente conectada aos novos tempos e que promova a saúde e o bem-estar. Precisamos explorar como trazer essas novas abordagens para a arquitetura de forma significativa e funcional. Isso me lembra das etnias indígenas e penso que deveríamos estudar mais a arquitetura vernacular dessas culturas. As etnias indígenas, por exemplo, testaram suas malocas e ocas ao longo de milhares de anos. O desenvolvimento de uma tipologia indígena ideal envolve muitos testes realizados geração após geração até chegar a uma solução que funcione perfeitamente para suas condições.

No Sul, por exemplo, os Kaingangs enterravam suas ocas no solo para se proteger do frio, enquanto no Nordeste, as habitações indígenas eram adaptadas ao clima local. A arquitetura precisa dessa inteligência local para ser eficaz. Devemos considerar que tipo de material e desenho estamos utilizando e se esses elementos não poderiam ser inspirados na natureza e nas condições locais.

Como espécie, nós, seres humanos, somos extremamente criativos, e essa criatividade é uma das nossas maiores qualidades. No entanto, quando nos afastamos do nosso entorno natural, corremos o risco de perder o significado e a relevância do que estamos criando, transformando nossas obras em algo desconectado e pasteurizado.

Quais são as práticas que você como arquiteta tem adotado para promover um futuro mais equilibrado nas grandes cidades?

Helena Ruette: Estamos buscando inspiração em fontes que nos ajudam a criar uma arquitetura que chamo de “arquitetura corpo”. Esse tipo de arquitetura faz com que, ao entrar, eu me sinta parte dela, como se fosse uma entidade que oferece conforto e bem-estar. Existe uma qualidade nesse espaço que promove calma e felicidade, e que contrasta com a falta de saúde comum em ambientes urbanos como São Paulo, onde vivemos em caixas de concreto sem luz natural.

A qualidade de vida não deve se restringir à sobrevivência, mas sim à vivência plena e saudável. Precisamos mudar de um sistema de sobrevivência para um sistema de vivência, onde a felicidade e a abundância se refletem nos espaços em que vivemos. Só assim podemos construir algo verdadeiramente inovador, pois não é possível avançar se estivermos presos a um modelo que apenas sobrevive.

Você acredita que o mercado está buscando mais a arquitetura ecológica?

Helena Ruette: Existe um público interessado nessa transformação sim. Fico muito feliz com isso, pois indica um interesse real por mudanças, embora ainda seja uma minoria, não 90% do mercado. O que eu digo para os meus alunos é que, embora o mercado esteja crescendo, ainda há poucas pessoas atuando nessa área. Portanto, há muito espaço para crescimento. Assim como a natureza é abundante em espaços, nós também devemos estar mais presentes para ajudar a construir essa realidade. 

A bioconstrução ainda é percebida como uma solução restrita a um público específico e não é amplamente acessível. Como você avalia a acessibilidade dessa prática e o que pode ser feito para tornar a bioconstrução uma opção viável para um público mais amplo? 

Helena Ruette: Recentemente, estou engajada em um projeto da ONG Together4Earth, voltado para o Rio Grande do Sul, onde estamos desenvolvendo iniciativas biomiméticas e oferecendo cursos de capacitação para mulheres em abrigos. Nosso objetivo é criar um ciclo ecológico que envolva não apenas a construção de casas, mas também sistemas integrados de gestão de água, saneamento ecológico e outros aspectos sustentáveis. Queremos implementar soluções que promovam uma verdadeira sustentabilidade e impacto positivo. 

Além de capacitar mulheres para que possam eventualmente gerar sua própria renda e melhorar suas condições de vida, acredito que a verdadeira arquitetura ecológica vai além dos materiais utilizados; ela abrange todo o processo. Isso inclui desde a integração de sistemas, como jardins de chuva para lidar com solos saturados, até a escolha dos materiais e a capacitação dos envolvidos na construção.

Atualmente, cerca de 90% da força de trabalho na construção civil é composta por homens, o que representa uma perda significativa para o mercado, tanto em termos de lucro quanto de diversidade de ideias e soluções. Se o objetivo é aumentar a eficiência e os lucros, ignorar a inclusão das mulheres é um erro estratégico.

Aqui no Brasil, e em muitos outros lugares, há uma série de questões que nos afastam de promessas verdadeiramente ecológicas. Recentemente, houve um evento em que a Caixa Econômica Federal lançou uma licitação que limitava as propostas apenas à arquitetura convencional. Diante de uma crise climática, faz sentido continuar operando o saneamento e a construção com os métodos e materiais tradicionais? É necessário ajustar as práticas e abrir espaço para novas abordagens e materiais inovadores, além de considerar novas formas de capacitação para a mão de obra. Manter o status quo não faz sentido quando enfrentamos desafios tão grandes. Precisamos adotar novas práticas que sejam mais justas e sustentáveis, em vez de insistir em métodos que já demonstraram não funcionar. 

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