Precisamos reconstruir um pacto entre cidade e natureza, diz Adriana Sandre

Adriana Sandre, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, analisa como o urbanismo brasileiro pode evoluir ao adotar Soluções Baseadas na Natureza em larga escala.

Por Paula Maria Prado em 29 de outubro de 2025 8 minutos de leitura

Adriana Sandre
Adriana Sandre (Foto: FAUUSP/Youtube/Reprodução)

As mudanças climáticas deixaram de ser uma ameaça distante para se tornarem parte do cotidiano das cidades brasileiras. De Norte a Sul, enchentes, secas prolongadas e ondas de calor testam diariamente os limites da infraestrutura urbana e revelam o quanto o País ainda precisa se adaptar a uma nova realidade. Nesse contexto, a implementação de Soluções Baseadas na Natureza (SbN) surge como estratégia essencial para reduzir riscos e aumentar a resiliência urbana. Conciliando natureza, engenharia e bem-estar, elas já apontam caminhos para o futuro de locais como Medellín, e seus os corredores verdes, e a China, com as cidades-esponja.

Em vez de muros de contenção e piscinões de concreto para responder à crise climática em meio à pressão do crescimento desordenado e da desigualdade social, o Brasil começa a trilhar seus próprios passos a partir das lições da natureza, como explica a professora Adriana Sandre, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Arquiteta, urbanista e formada em ciências biológicas, ela analisa os avanços e desafios dessa jornada.  Com experiência em projetos de SbN que envolvem tratamento das águas, contenção de encostas e melhoria do microclima em comunidades e favelas, Adriana fala sobre o papel da ciência, das políticas públicas e da cultura técnica na construção de um urbanismo climático e inclusivo. Confira!

O levantamento da Casa Civil mostra que quase 9 milhões de brasileiros vivem em áreas expostas a desastres. O que isso revela sobre o nível de preparação das nossas cidades diante da crise climática?

Adriana Sandre: Esse número indica não só a presença física de pessoas em locais de risco, mas expõe a combinação perversa entre urbanização desigual e vulnerabilidade socioambiental. Resultado de décadas de políticas habitacionais insuficientes, grande parte dessas populações ocupa encostas instáveis e margens de rios e córregos. A vulnerabilidade, nesse contexto, reflete um padrão histórico de exclusão e de injustiça ambiental.

Muitos municípios carecem de planos diretores atualizados ou, quando os possuem, raramente integram a análise de risco climático e a gestão ambiental ao ordenamento territorial. Essa desconexão institucional entre urbanismo e clima mostra que a adaptação ainda não é tratada como eixo estruturante da política urbana, mas como resposta pontual a emergências. Ou seja, atuamos depois que o evento ocorreu — reagimos às tragédias em vez de preveni-las —, reforçando o ciclo de perdas humanas e materiais. Nesse cenário, a crise climática atua como amplificadora das desigualdades: quanto menor a renda e a infraestrutura disponível, maior a exposição ao perigo.

Leia também: Justiça climática: o que é e como afeta as cidades?

Essa questão inclui outros agravantes criados pelas soluções que escolhemos?

Adriana Sandre: Sim, a dimensão do problema revela outra faceta: a escolha prioritária por infraestrutura cinza (por exemplo, canais e muros de contenção de concreto e reservatórios de detenção — os chamados piscinões, em São Paulo) em detrimento de abordagens multifuncionais. Experiências com infraestruturas híbridas, que associam as Soluções Baseadas na Natureza (SBN), têm demonstrado potencial para ampliar a resiliência urbana a eventos extremos, embora ainda enfrentem barreiras de implementação e reconhecimento institucional. Porém, não sejamos anacrônicos: as cidades não estão preparadas porque, em grande medida, não foram concebidas para lidar com a variabilidade do clima nem com a justiça socioambiental.

Quando falamos em “eventos extremos”, do que exatamente estamos tratando? Quais são os principais riscos que o Brasil enfrenta hoje?

	
Pessoas caminhando com guarda-chuvas na rua durante uma forte chuva, cenário urbano com tempo chuvoso e molhado, ambiente da cidade de São Paulo em dia de chuva.
Foto: Iara Faga/ Shutterstock

Adriana Sandre: Nesse sentido, o climatologista Carlos Nobre alerta que fenômenos que antes ocorriam, por exemplo, uma vez por década, já estão acontecendo com frequência bienal, como é o caso de chuvas intensas e ondas de calor mais prolongadas. Como ele denomina, “a era dos extremos” é uma condição presente, não mais futura.

No Brasil, os principais riscos associados a eventos extremos incluem chuvas intensas concentradas (como as que vivenciamos em várias cidades nos últimos anos), que desencadeiam inundações e deslizamentos em encostas, além das secas estendidas, sobretudo no Nordeste, na Amazônia e em regiões do Centro-Oeste — lembrando das secas severas que atingiram a Amazônia e o Pantanal, enquanto, no Rio Grande do Sul, tivemos inundações históricas.

O que faz dos corredores verdes de Medellín, na Colômbia, uma boa referência para cidades brasileiras?

Adriana Sandre: Embora ainda não tenha lido dissertações e teses que discutam o projeto dos Corredores Verdes de Medellín, reconheço que ele constitui uma referência relevante para o urbanismo contemporâneo. A iniciativa integra uma estratégia de infraestrutura verde em larga escala, conectando os espaços livres verdes (como parques) por meio de avenidas arborizadas. Os corredores contribuem, assim, para reduzir as ilhas de calor, melhorar a qualidade do ar e mitigar inundações. O êxito do programa está em associar a arborização urbana à proposta de conexão entre fragmentos vegetais.

O caso de Medellín também é exemplar por priorizar bairros periféricos historicamente negligenciados e por reintroduzir a vegetação como infraestrutura essencial, não apenas como elemento ornamental. Trata-se da concepção de que a adaptação climática deve estar associada à equidade territorial.

Leia também: Parques lineares: o caminho entre natureza e áreas urbanas   

E o conceito das “cidades-esponja”, aplicado na China — o que o torna tão eficiente na contenção de enchentes?

Ambiente urbano na China com estilo de cidade-esponja.
Foto: Weiming Xie/ Shutterstock

Adriana Sandre: O conceito das “cidades-esponja”, desenvolvido na China sob a liderança do arquiteto e paisagista Kongjian Yu, do escritório Turenscape, propõe uma mudança de paradigma na relação entre urbanização e água. Na prática, isso significa transformar o tecido urbano em uma estrutura porosa, capaz de infiltrar a água onde ela cai, desacelerar o escoamento superficial por onde ela percorre e, ao chegar ao fundo de vale, reduzir eventuais inundações.

Em projetos como o Qunli Stormwater Park (em Harbin) e o Yanweizhou Park (em Jinhua), o escritório Turenscape demonstra ser possível conviver com as águas. Nessas experiências, o parque é parte da infraestrutura urbana e é multifuncional, pois atua na regulação do ciclo da água, favorece a biodiversidade, cria paisagens resilientes, promove a convivência e melhora o conforto ambiental.

Você tem projeto inspirado no conceito?

Adriana Sandre: Desenvolvi, junto a colegas da FAUUSP, o método dos “Momentos da Água”, que parte da leitura integrada das dinâmicas hidrológicas e ecológicas do território para orientar intervenções urbanas e paisagísticas. O método propõe reconhecer a água em suas múltiplas manifestações (infiltração, retenção, escoamento e evaporação), articulando-as a diferentes SBN. Assim, cada SBN possui um lugar dentro da bacia hidrográfica, de acordo com as condições geomorfológicas, de solo e de uso do solo.

Poderia exemplificar?

Adriana Sandre: Dispositivos de infiltração são ideais para cabeceiras; dispositivos de diminuição da velocidade das águas, para encostas; de retenção, em fundos de vale; e de evapotranspiração e purificação, nas zonas de várzea. Para tanto, um estudo sistêmico da bacia hidrográfica permite compreender o funcionamento das águas superficiais e subterrâneas, bem como suas interações com o tecido urbano.

Em suma, trata-se de aprender a conviver com as águas urbanas. A eficiência não está apenas no volume de água amortecido (expresso nos índices de retenção ou na redução de inundações), mas na reconstrução de um pacto entre cidade e natureza, entre infraestrutura e paisagem.

Pensando na realidade brasileira, que tipo de adaptação urbana poderia seguir esses princípios, aproveitando parques, praças e áreas públicas de forma mais inteligente?

Adriana Sandre: Os princípios das cidades-esponja e do método dos “Momentos da Água” podem inspirar uma reorientação do urbanismo brasileiro, no sentido de transformar parques, praças e áreas públicas em infraestruturas multifuncionais. Em vez de espaços isolados e de manutenção ornamental, esses territórios poderiam ser reconcebidos como parte do sistema hidrológico urbano — áreas capazes de reter, infiltrar e fitorremediar a água das chuvas. Muitos desses parques podem ser pensados como parques anfíbios, capazes de atuar como reservatórios de água em períodos de cheias e como espaços de convivência e permanência em períodos secos.

O que isso significa na prática?

Foto: PJL909/ Shutterstock

Adriana Sandre: Significa adotar dispositivos de drenagem sustentável — como reservatórios anfíbios, jardins de chuva, biovaletas e bacias de retenção — integrados ao desenho da paisagem e não tratados como obras de engenharia separadas e monofuncionais (como os piscinões de concreto). Essa integração exige o reconhecimento de que o espaço livre pode desempenhar papéis técnico, ecológico e educativo simultaneamente, compondo uma malha resiliente de infraestruturas conectadas. Essa malha compreende a multiescalaridade funcional dos espaços livres, envolvendo desde parques regionais até locais, atuando como elementos distintos e complementares da bacia.

Poderia citar um exemplo dessa abordagem?

Adriana Sandre: O projeto da Praça de Infiltração Saracura, desenvolvido pelo escritório Guajava no âmbito do Caderno da Bacia Hidrográfica do Anhangabaú, elaborado pela FCTH para a SIURB, da Prefeitura de São Paulo. Ele foi concebido para reter e infiltrar as águas pluviais provenientes do entorno, reduzindo a sobrecarga sobre a microdrenagem e contribuindo para a recarga do lençol freático, ao mesmo tempo em que oferece um espaço público qualificado e multifuncional.

A solução atua como parte de um conjunto sistêmico de dispositivos distribuídos — que inclui jardins de chuva, biovaletas, terraços de chuva, poços de infiltração, escadas hidráulicas, vegetação e áreas de renaturalização ao longo do córrego Saracura. Ou seja, cada dispositivo atua em um momento distinto da água, conectando desde as nascentes até o fundo de vale. Esse projeto demonstra que a lógica das cidades-esponja e dos “Momentos da Água” pode ser traduzida para a realidade paulistana.

Você menciona que ainda há resistência a abandonar o “concreto” como solução única. Por que é tão difícil mudar esse paradigma na engenharia e no urbanismo?

Adriana Sandre: Está enraizada em uma cultura técnico-profissional consolidada ao longo de décadas, na qual a solidez, a previsibilidade e o controle são considerados sinônimos de eficiência. Desde o processo de modernização urbana do século XX, o concreto tornou-se símbolo de progresso e de domínio da natureza. Sua presença em pontes, canais e avenidas expressava — e ainda expressa — uma confiança quase absoluta na capacidade humana de regular o ambiente. Essa mentalidade se traduziu em normas, currículos, contratos e práticas de engenharia que reforçaram a ideia de que as soluções estruturais duras eram mais seguras e mensuráveis. Mudar esse paradigma significa, portanto, não apenas substituir materiais, mas revisar a lógica de projeto e os critérios técnicos — o que naturalmente encontra resistências em contextos onde a tradição é forte.

Além disso, é importante reconhecer que essa cultura não deriva de má vontade, mas da familiaridade com métodos e materiais amplamente testados e dominados. Profissionais formados sob essa matriz técnica tendem a confiar no que é conhecido e comprovado, enquanto a adoção de Soluções Baseadas na Natureza demanda novas referências, normas, ferramentas e parâmetros de desempenho — muitos dos quais ainda inexistentes no Brasil. Trata-se menos de uma disputa entre o velho e o novo e mais de um processo de ampliação do repertório técnico, em que o concreto não desaparece, mas passa a coexistir com outras soluções vegetadas, as chamadas infraestruturas híbridas.

A crise climática já é uma realidade. Que tipo de políticas públicas — e de mentalidade — precisamos desenvolver agora para que nossas cidades se tornem mais resilientes?

Adriana Sandre: A crise climática já se manifesta em várias localidades — é uma realidade atual, não futura. Estamos em um momento importante: em novembro teremos a COP 30, sediada em Belém/PA, que representa uma oportunidade para o Brasil reafirmar seu papel como protagonista na ação climática. Para além dos compromissos diplomáticos a serem estabelecidos, espera-se o fortalecimento de políticas locais que articulem mitigação e adaptação — colocando, também, a adaptação no centro da discussão.

No caso de São Paulo, temos o PlanClima SP, que estabelece diretrizes para reduzir emissões e aumentar a resiliência urbana, articulando infraestrutura verde, mobilidade sustentável, gestão hídrica e transição energética. Se a COP 30 marca o momento de reafirmar compromissos globais, os planos locais são fundamentais para indicar que a transformação começa, também, no território.

Leia também: COP30 é oportunidade para cidades assumirem o protagonismo diante da urgência climática

Olhando para o futuro: você acredita que o Brasil está caminhando para incorporar de forma consistente esses modelos sustentáveis em larga escala? O que ainda falta para isso acontecer?
Adriana Sandre:
O Brasil começa, de fato, a trilhar um caminho em direção à incorporação de modelos sustentáveis em larga escala, sobretudo a partir da consolidação de políticas climáticas municipais, planos de infraestrutura verde e iniciativas de requalificação urbana baseadas em Soluções Baseadas na Natureza. A crescente presença desses temas em editais públicos, planos diretores e projetos de drenagem urbana demonstra uma mudança de paradigma.

Projetos como a Praça de Infiltração Saracura, do Caderno de Bacia do Anhangabaú; o POP Niterói; o Parque Rachel de Queiroz, em Fortaleza; o jardim de chuva de Contagem; o wetland da CPTM Cidade Jardim, em São Paulo; o coletivo Rios e Ruas; o Parque da Orla do Guaíba, em Porto Alegre; e os parques lineares e ações de urbanismo tático em Campinas sinalizam um movimento emergente e diversificado de implementação de Soluções Baseadas na Natureza (SBN) no território brasileiro, que tende a se ampliar nos próximos anos.

Ainda assim, é preciso reconhecer que estamos aquém de experiências consolidadas. Apesar dos avanços conceituais e técnicos, persistem desafios relacionados à carência de instrumentos financeiros e de normativas para a implantação de SBN. Mesmo assim, o panorama é promissor. Há um amadurecimento gradual. À medida que se consolidam políticas e que eventos como a COP 30 colocam o Brasil no centro do debate global, o país tem condições de transformar sua imensa diversidade ecológica em potência.

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