As rotatórias reduziram acidentes em vários países, mas no Brasil ainda falham em proteger quem mais precisa: pedestres. É essa contradição que a pesquisa “Segurança de pedestres em rotatórias urbanas”, do arquiteto e professor Johnny Vieira de Souza, mestre em Engenharia Urbana pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), expõe ao comparar a aplicação brasileira com modelos internacionais, revelando falhas de desenho, sinalização e prioridade que mantêm os usuários mais vulneráveis em risco.
Suas análises, realizadas em rotatórias de cidades médias como São José do Rio Preto e São Carlos (SP), mostram que, embora o Brasil tenha adotado parte do conceito de “rotatória moderna”, ainda há uma distância significativa entre o que é implantado aqui e o que as diretrizes internacionais propõem. Problemas como faixas de pedestres mal posicionadas, ausência de deflexões que reduzam a velocidade dos veículos e desenhos que forçam o pedestre a percorrer trajetos mais longos comprometem a segurança e a eficácia do sistema.
Souza reforça que o problema central não está na falta de espaço urbano, mas na aplicação inadequada dos princípios técnicos que definem uma rotatória verdadeiramente segura. Estudos internacionais mostram que a proteção ao pedestre depende de controles geométricos claros, ou seja, deflexão bem projetada, largura reduzida das faixas, posicionamento correto das travessias e leitura intuitiva do fluxo.
Quando esses elementos são negligenciados, como ainda ocorre com frequência no Brasil, a rotatória perde sua função essencial: reduzir conflitos e proteger os usuários mais vulneráveis. Para ele, ajustes simples, como reposicionar travessias, criar ilhas de refúgio e aplicar medidas físicas de calmamento de tráfego, já demonstraram eficácia em diversos países e podem ser replicados aqui sem grandes obras.
Nesta entrevista, ele explica o que faz uma rotatória ser de fato segura, por que tantas cidades brasileiras ainda erram na implantação e quais soluções práticas podem aproximar nosso modelo dos padrões internacionais.
Por que os ganhos de segurança observados internacionalmente nem sempre se reproduzem para pedestres no Brasil?

Johnny Vieira de Souza: Os estudos internacionais, que registram quedas significativas em acidentes após a implantação de rotatórias, partem de projetos com geometrias rigorosas de calmamento de tráfego (traffic calming) e de uma forte cultura de cedência (yield). No Brasil, esses ganhos não se concretizam plenamente porque muitas rotatórias ainda priorizam o veículo. Dispositivos com raios amplos e pistas largas permitem velocidades mais altas na entrada e na circulação, reduzindo a segurança de quem precisa atravessar.
Além disso, o pedestre foi historicamente “esquecido” no processo de projeto: em muitos locais faltam faixas de travessia, há descontinuidade de passeios e a iluminação é inadequada, especialmente nas rotatórias mais antigas. Soma-se a isso uma fragilidade na cultura de preferência ao pedestre. Motoristas frequentemente deixam de ceder passagem, gerando longos tempos de espera, travessias incertas e maior exposição ao risco.
Qual erro de projeto é mais determinante para o comportamento de travessia de alto risco do pedestre?
Johnny Vieira de Souza: O erro de projeto mais determinante é o mau posicionamento — ou o excesso de distância — das faixas em relação à “linha de desejo” do pedestre. Quando as travessias são colocadas longe demais ou exigem desvios desnecessários, as pessoas tendem a buscar caminhos mais diretos, mesmo que perigosos. A ausência de elementos físicos que desencorajem essas travessias indevidas, como defensas metálicas ou barreiras de direcionamento, também contribui para esse comportamento.
O problema se agrava quando a rotatória não reduz adequadamente a velocidade. Se a geometria não força a desaceleração, o motorista não espera encontrar pedestres fora das faixas regulamentares, ampliando o risco de atropelamento. Em velocidades elevadas, perde-se o princípio de segurança passiva que deveria caracterizar a rotatória.
As rotatórias brasileiras ainda costumam priorizar o carro. É possível conciliar fluidez e proteção do pedestre?

Johnny Vieira de Souza: Sim. As rotatórias urbanas brasileiras, embora eficientes e de baixo custo, acabam priorizando a circulação veicular motorizada devido à falta de infraestrutura adequada para pedestres e ciclistas, que raramente recebem o mesmo nível de atenção no processo de projeto.
A conciliação entre fluidez e segurança é possível. A literatura e especialistas apontam que a prioridade ao pedestre deve estar presente desde a concepção da rotatória. Geometrias mais “apertadas” (deflexão), que forçam a redução de velocidade, e a adoção de infraestrutura segregada — como faixas elevadas, defensas metálicas e ilhas de refúgio — aumentam a previsibilidade e a segurança da travessia sem comprometer o desempenho do dispositivo.
Quais são, na prática, os principais pontos de conflito entre veículos e pedestres nas rotatórias?

Johnny Vieira de Souza: Embora a rotatória moderna reduza o número total de pontos de conflito, nas rotatórias brasileiras os problemas se concentram em dois locais. O primeiro é nas entradas e saídas, onde ocorre a transposição da faixa pelo pedestre. Nesses trechos, o motorista divide sua atenção entre o fluxo circulante, a manobra de entrada ou saída e a presença muitas vezes inesperada do pedestre.
O segundo é na circulação, sobretudo em rotatórias de múltiplas faixas. Nessas situações, há menor previsibilidade e visibilidade, e o condutor nem sempre espera encontrar pedestres próximos à área de circulação, ampliando o risco de atropelamento.
Como intervir nas rotatórias para aumentar a segurança de todos os usuários?
Johnny Vieira de Souza: As intervenções devem ocorrer em três frentes complementares. A primeira trata do reposicionamento das faixas de pedestres, que precisam estar alinhadas à “linha de desejo”. Recomenda-se afastar a faixa cerca de cinco metros da pista circular, criando uma ilha de refúgio natural que aumenta a previsibilidade da travessia.
A segunda diz respeito à falta de barreiras físicas. É fundamental implantar elementos que forcem a redução de velocidade, como deflexões de entrada, raios mais curtos e faixas elevadas (platôs), que funcionam simultaneamente como barreiras físicas e redutores de velocidade.
A terceira diz respeito ao hábito de encurtar caminho. O principal meio de mitigação é o redesenho que respeite a trajetória real do pedestre. Educação e fiscalização complementam o processo, mas o projeto seguro deve ser sempre a primeira linha de proteção.
Que elementos geométricos e de sinalização são imprescindíveis para a proteção de pedestres?

Johnny Vieira de Souza: É necessário combinar diferentes elementos capazes de forçar o calmamento de tráfego. O primeiro é o dimensionamento do raio externo e da ilha central: rotatórias mais compactas induzem maior deflexão e reduzem naturalmente a velocidade. A largura da faixa também é determinante; quanto mais estreita — preferencialmente faixa única — menor a tendência a altas velocidades.
A ilha central precisa ter porte suficiente para bloquear a visão direta de um lado ao outro, obrigando o motorista a reduzir a velocidade. Outro aspecto essencial é o afastamento da faixa de pedestres, idealmente cerca de cinco metros do anel viário, criando uma ilha de refúgio que permite lidar com um fluxo de tráfego por vez.
Por fim, a iluminação deve ser cuidadosamente direcionada para a área de travessia, garantindo visibilidade clara do pedestre, sobretudo à noite.
O “barato” de implantação tem trazido um custo oculto à segurança do pedestre? Que mudanças de gestão/política pública seriam necessárias?
Johnny Vieira de Souza: Sim. O “barato” de implantação, entendido como dispositivos de baixo custo e alta eficiência veicular, acaba gerando um custo oculto à segurança do pedestre. Muitas rotatórias aproveitam geometrias amplas já existentes, que favorecem velocidades mais altas e reforçam a prioridade do fluxo motorizado. A literatura indica que boa parte desses dispositivos não garante travessias realmente seguras.
Para reverter o quadro, é necessário colocar a segurança do pedestre como critério primário no projeto. Também é preciso adotar padrões obrigatórios de calmamento, alinhados às rotatórias modernas, e investir em infraestrutura de apoio, como faixas elevadas, ilhas de refúgio, sinalização tátil, passeios qualificados e acessibilidade. Fiscalização e educação complementam o processo, reforçando a cultura de cedência e de prioridade aos modos vulneráveis.
Cidades brasileiras já conseguem implantar rotatórias conforme diretrizes internacionais, ou é preciso adaptar soluções? Quais passos práticos recomendaria?
Johnny Vieira de Souza: As cidades brasileiras têm avançado na incorporação de diretrizes internacionais, e rotatórias mais recentes já apresentam melhor tratamento para pedestres. Ainda assim, há necessidade de adaptações e de maior aprofundamento técnico. Entre os passos práticos, o primeiro é realizar um diagnóstico geométrico, com inventário das rotatórias, classificação da geometria (como raio e largura de faixa) e avaliação da velocidade real praticada.
Em seguida, é essencial priorizar o pedestre, integrando sua “linha de desejo” ao desenho das travessias. Também se recomenda o uso de mini-rotatórias ou rotatórias compactas em áreas urbanas densas, pois induzem naturalmente à redução de velocidade. A adoção de medidas físicas de calmamento — como faixas elevadas, balizadores e elevação de passeio — reforça a segurança. Por fim, a capacitação técnica das equipes municipais é fundamental para dominar os princípios das rotatórias modernas e projetar soluções mais seguras e eficientes.