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A saúde está na forma de viver a cidade, diz Erico Vasconcelos
Em entrevista, Erico Vasconcelos CEO da smarthealth UniverSaúde traz uma visão ampla, integrada e integral da saúde.
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Paula Caires em 11 de setembro de 2024 8minutos de leitura
Erico Vasconcelos (Foto: Divulgação)
Atuando como cirurgião-dentista pediatra, Erico Vasconcelos se constrangia na hora de passar o orçamento dos serviços prestados para os pais. Seu lugar era outro. Tornou-se cirurgião-dentista sanitarista e integrou as primeiras Equipes de Saúde Bucal no Programa Saúde da Família (PSF) do País, iniciando sua trajetória na relação entre saúde e cidade. Conquistou espaços na gestão estratégica de organizações públicas e privadas chegando a atuar no Ministério da Saúde, o que o fez enxergar outra realidade: um alto índice de ineficiência operacional.
Foi assim que ele despertou para criação do seu negócio – a UniverSaúde, uma smart health focada em capacitar gestores e profissionais de organizações de saúde públicas e privadas. Também professor de cursos de graduação e pós-graduação voltados para a formação de gestores e profissionais de saúde, já colaborou na criação de cursos de Residência Médica e Multiprofissional na Faculdade de Ciências da Saúde de Barretos (FACISB), Universidade Aberta do SUS – Universidade Federal de São Paulo (UnASUS-UNIFESP), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), dentre outras ações.
Em entrevista ao Habitability, ele fala sobre governança e governabilidade, a falta de uma visão ampla, integrada e integral do conceito de saúde e do ser humano em todas as suas relações e, é claro, a relação entre saúde e cidade, tema de sua palestra no Congresso Connected Smart Cities, realizado em São Paulo, nos dias 3 e 4 de setembro. Confira!
O conceito mais amplo de saúde engloba a qualidade de vida e o bem-estar. Nesse sentido, a cidade também tem um papel importante para a promoção da saúde de seus habitantes? Há cases bem-sucedidos dessa intersecção entre saúde e cidades?
Erico Vasconcelos: Sem dúvida as cidades têm essa responsabilidade. É onde as pessoas nascem, vivem, adoecem e morrem. A primeira porta que as pessoas têm para bater quando precisam de ajuda com a saúde, pela estrutura brasileira do Sistema Único de Saúde (SUS), é na esfera municipal. Esse olhar sobre a saúde à luz do que acontece nas cidades é extraordinariamente dependente da forma como os governantes pensam.
O que deve guiar esse pensamento?
Erico Vasconcelos: O desenvolvimento dos projetos na área da saúde pública precisa ter essa lógica como premissa. Por meio dos princípios da integralidade, da universalidade e da equidade, é preciso, primeiramente, promover saúde, considerando a individualidade de cada um, tanto do ponto de vista social, quanto econômico. Para isso, é necessário mapear o perfil dos habitantes, na particularidade de cada região e do seu próprio ciclo de vida. E esse é o primeiro nível da teoria de Leavell e Clarke [dois autores da área da Saúde Pública que cunharam a teoria da “História Natural das Doenças”]. Depois vem a detecção e o diagnóstico precoces, a assistência, tão logo possível, e, se não houver chance de cura, a reabilitação.
Atuar mais fortemente nos primeiros pilares, de promoção da saúde e prevenção da doença, acaba sendo mais efetivo e mais econômico do que quando se direciona mais os esforços para o tratamento?
Erico Vasconcelos: Usamos marcadores de custo efetivo para embasar essa relação e a diferença nos números é gritante. A cada R$ 1 aplicado na atenção primária à saúde você economiza de R$ 5 a R$ 10 no âmbito hospitalar. A atenção primária engloba a promoção da saúde, a prevenção da doença e a responsabilidade de detectar e diagnosticar precocemente, além da própria assistência, para que as pessoas com morbidades sejam devidamente acompanhadas para que não haja complicações. Embora essa diferença nos valores possa variar a depender do local, é uma das diversas evidências que temos para demonstrar isso, pois a densidade tecnológica de uma infraestrutura hospitalar é maior e, portanto, mais cara.
A estrutura de atenção primária à saúde tem, então, um grande peso estratégico na saúde pública?
Erico Vasconcelos: Eu participei da implementação do programa Saúde da Família no Estado do Ceará, em 1994, que reuniu agentes comunitários de saúde, o enfermeiro, técnico de enfermagem e, por fim, o médico. Em 4 de outubro de 1999, o Governo Federal reconheceu, por meio do decreto Presidencial N° 3.189, o exercício da atividade de Agente Comunitário de Saúde, que passou a ser legalmente considerada uma profissão de “relevante interesse público”. Isso transformou por completo os indicadores: a taxa de mortalidade infantil que era de aproximadamente 55 óbitos infantis no primeiro ano de vida para cada mil nascidos vivos, hoje está entre 11 e 12. O sistema tem uma resolutividade de 80%. Quer dizer que a cada 10 problemas apresentados por 10 pessoas, 8 são resolvidos no nível da atenção primária à saúde. Dentre outros indicadores, estes evidenciam a efetividade do programa. Resultados positivos que só foram possíveis graças à ampliação da cobertura da estratégia.
Teria ainda um passo anterior, antes mesmo dessa pessoa ter de fato o problema? Por exemplo, há diversos estudos que demonstram o impacto positivo da prática das atividades físicas regulares na saúde humana, assim como uma alimentação saudável. Fatores que também permeiam a infraestrutura das cidades. Já temos exemplos desse nível de transversalidade da saúde em outros âmbitos?
Erico Vasconcelos: Extraordinariamente pontuais. Esse olhar sobre a saúde no âmbito das atividades diárias do ser humano ainda é muito incipiente e frágil. Pensar a saúde no seu conceito mais abrangente é uma demanda ainda desafiadora. Não é uma realidade comum, a tomar como exemplo o baixo quórum desse debate no Congresso sobre cidades.
Por falar sobre o Connected Smart Cities, como você entende que o tema saúde deve estar integrado no conceito de cidade inteligente? O que é a saúde em uma cidade inteligente ou o que deveria ser?
Erico Vasconcelos: Ela tem que contemplar essa visão mais abrangente da saúde, entendendo que ela não deve estar em um setor específico. A saúde está na nas relações sociais, está no meio ambiente, na mobilidade urbana, na arquitetura… a saúde está na forma de viver a cidade, na educação, sobretudo.
Você conhece alguma iniciativa que aponte para essa direção?
Erico Vasconcelos: Eu participei de um debate em um programa de formação de novas lideranças de gestores municipais, que nasceu da motivação de melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Discutimos o conceito de integralidade exatamente para avançar nesses aspectos. E chegamos à conclusão de que é preciso ampliar o repertório dos profissionais com uma formação voltada para liderança, para que eles estejam aptos a acolher e conduzir as pessoas da comunidade como facilitadores de conteúdos. A premissa básica da cidade inteligente em relação à saúde é que ela comece a dar conta de impulsionar o diálogo sobre a saúde em seu conceito mais amplo. Até para que os próprios agentes da saúde consigam ampliar seu olhar e possam considerar se envolver nos debates para além de seu próprio campo específico de atuação. Mas isso acaba sendo abafado pelo senso de urgência e pela falta deste tipo de bagagem. Eles não conseguem dar conta de que eles são importantes facilitadores e propagadores desse olhar mais abrangente da saúde na cidade.
Qual é o perfil médio desse profissional? Você menciona que boa parte deles é partidária. Avançar na governança é o caminho para que, uma vez capacitado, o gestor de saúde possa fazer uma gestão estritamente profissional, com menor influência das questões políticas?
Erico Vasconcelos: Não faltam evidências científicas de que nosso nível de governança ainda é bastante baixo nesse setor. A mais gritante para mim é a rotatividade dos secretários municipais de saúde. Um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) mostra que, a cada mês, 300secretários são trocados. O Brasil tem 5.565 municípios. Isso quer dizer que em média a cada dois anos, temos praticamente todos os secretários de saúde sendo trocados do País. Ou seja, é como se cada município trocasse de secretário, no mínimo, duas vezes a cada mandato do prefeito. A saúde é a segunda pasta mais rica de um município, atrás apenas da educação. Portanto, é extraordinariamente poderosa e que dá muita visibilidade política.
A visão da medicina ocidental, que enxerga o ser humano “em partes”, diferentemente do Oriente, que já tem uma visão mais do ser humano integral, de certa forma também é um complicador para uma visão mais abrangente e mais integrada do conceito de saúde?
Erico Vasconcelos: Sem dúvidas que sim. Essa é uma das causas dos principais problemas sobre os quais conversamos aqui, porque isso está estabelecido culturalmente e de forma intergeracional. A fragmentação do cuidado leva à busca de ultra mega especialistas, o que fortalece a indústria de equipamentos hospitalares e a indústria farmacêutica, tornando a prestação de serviço mais custosa. Mas passa uma imagem positiva para a população, que se sente beneficiada quando novos equipamentos são inaugurados.
Por outro lado, o SUS é considerado um modelo de referência internacional. Quais os elementos o colocam nesse lugar?
Erico Vasconcelos: Especialmente devido aos seus três princípios – universalidade, integralidade e equidade – além das suas diretrizes norteadoras, como a hierarquização da atenção e a regionalização do cuidado. Não há nenhum outro sistema de saúde tão universal ou tão potente quanto o SUS. E trata-se de um modelo historicamente recente. A saúde como política social surgiu na Constituição Federal de 1988. O que são 30 anos? O Reino Unido, por exemplo, já pensa a saúde pública há mais de 150 anos.
E o que está dando errado? A falta de verba é um problema significativo?
Erico Vasconcelos: Dinheiro é um problema porque esse sistema universal não se banca. Há países que têm sistemas universais e investem de três a cinco vezes mais que o Brasil. O País investe mais nas instituições que ofertam saúde de modo suplementar, como subsídios, do que na própria saúde pública.
Qual é essa relação?
Erico Vasconcelos: No meu artigo “Cada real importa” eu trago esses dados. Dos 9% do Produto Interno Bruto (PIB) investido em saúde, 3,98% é para a saúde pública. Ou seja, mais da metade do recurso é destinado à saúde privada. Como é que pode um sistema universal ter menos da metade do financiamento investido nele? Estamos fomentando a saúde suplementar, que se beneficia das fragilidades da saúde pública.
A ineficiência da gestão é um agravante? É possível medir o grau de ineficiência da gestão na aplicabilidade desse recurso que sobra? E é possível melhorar?
Erico Vasconcelos: Tanto é possível medir como há dados a esse respeito na literatura. A partir dos relatórios de auditoria realizados pela Controladoria Geral da União, que avaliou 102 municípios, há um artigo acadêmico que observa como problema predominante a má administração do recurso financeiro aplicado na saúde. Um estudo da Coppead-Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da professora Cláudia Araújo, mostra que 46% dos recursos do SUS em um dado ano foram desperdiçados em função da má gestão, além dos dois célebres artigos históricos do Banco Mundial e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mostram o quanto o dinheiro do SUS é aplicado de forma ineficiente no nosso País.
Foi a partir desse pressuposto que você criou a UniverSaúde?
Erico Vasconcelos: Temos dois objetos principais. Um deles é a necessidade de gerenciar melhor esse processo interno da Secretaria por meio das pessoas que usam a capacidade instalada daquela unidade. Então, criamos um sistema de medição para monitorar e avaliar o quanto aquelas equipes estão produzindo em comparação ao que elas poderiam produzir, com base na capacidade de atendimento em potencial. Essas métricas são importantes porque direcionam, por exemplo, a compra de insumos e suprimentos em geral, evitando desperdício devido a prazos de validade vencidos: 40% dos desperdícios estão aí!
E qual o segundo objeto de trabalho?
Erico Vasconcelos: O outro ponto é pensar os processos de trabalho da Secretaria de Saúde a partir desses dados, que trazem à tona a realidade. Nossos projetos promovem essas duas trilhas por meio de uma plataforma e vídeo-conferências com ações instrucionais e gerenciais, pegando na mão e fazendo junto. Já trabalhamos com cerca de 50 cidades. Em uma delas, com a qual estamos trabalhando atualmente, a partir do diagnóstico fizemos um plano de ação e já conseguimos economizar R$ 164 mil nos últimos quatro meses, evitando desperdícios.
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