Quando se fala em sustentabilidade na arquitetura, a imagem que costuma vir à mente é a de edifícios com certificações verdes, uso de tecnologias de baixo impacto e soluções baseadas em eficiência energética. Mas será que esse modelo, amplamente difundido no mundo ocidental e muitas vezes associado a uma lógica de sustentabilidade colonialista, de fato responde a todos os desafios ambientais e sociais dos territórios latino-americanos?
Na Colômbia, um grupo de arquitetos propõe um caminho diferente. À frente da fundação Organizmo, a arquiteta Ana María Gutiérrez desafia os paradigmas convencionais do setor e levanta uma pergunta: “o que estamos tentando sustentar?”. A partir dessa provocação, seus projetos rompem com a lógica da sustentabilidade como um selo de mercado e colocam no centro da arquitetura os saberes ancestrais, a escuta das comunidades e a regeneração dos ecossistemas.
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Partindo da Colômbia rural, passando por bairros populares de Medellín e chegando a comunidades indígenas da Amazônia, a atuação da Organizmo inspira uma nova forma de projetar, menos baseada em inovação tecnológica e mais centrada nos saberes de povos locais. E, como mostra uma descoberta recente na floresta amazônica brasileira, os povos originários da América Latina têm muito a ensinar sobre construção, resiliência e permanência em territórios desafiadores.
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O que exatamente estamos sustentando?
No terreno montanhoso de Tenjo, a cerca de 50 minutos de Bogotá, a Fundación Organizmo opera como uma espécie de laboratório. Mas, ao contrário de centros de pesquisa tradicionais, aqui a base do conhecimento não vem de simulações digitais ou tecnologias de ponta, e sim da terra crua, do bambu, da palha trançada, da escuta ativa e da memória ancestral.
O coletivo desafia uma ideia muito difundida no campo da arquitetura, a de que basta otimizar recursos, reduzir emissões e empregar materiais “verdes” para tornar um projeto sustentável. Para Gutiérrez, essa lógica não só é limitada, como perpetua estruturas coloniais de poder, especialmente quando ignora os modos de vida, construção e regeneração das populações tradicionais latino-americanas.
“Como arquitetos, precisamos desaprender tudo o que nos foi ensinado”, diz Ana María Gutiérrez, em entrevista ao The Guardian. “Nossa ideia de progresso é completamente baseada em práticas colonialistas e extrativistas. As pessoas falam sobre sustentabilidade, mas o que exatamente estamos sustentando?”
A Organizmo enxerga sustentabilidade não como meta, mas como consequência. E essa consequência só é possível, segundo o grupo, se for orientada por outras epistemologias, especialmente aquelas dos povos originários. Assim, o que começa como uma pergunta incômoda vira método de trabalho e experimentação prática.
Um laboratório vivo de arquitetura regenerativa
A sede da Organizmo, instalada em um terreno de 30 acres, funciona como esse espaço de experimentação, mas também como provocações estética e ética. O local abriga construções que seguem princípios de bioconstrução, permacultura e arquitetura sensorial, sempre em diálogo com os ciclos naturais do entorno e com saberes tradicionais da América Latina.
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O projeto mais emblemático do local é a chamada “Casa do Pensamento”. Em forma de toróide, a estrutura é feita de palha, bambu e barro, e abriga atividades que vão de oficinas práticas a rituais simbólicos. Em vez de pranchetas ou renders digitais, o cotidiano ali envolve fazer tijolos com calhas de lama, explorar a arquitetura da terra crua, praticar agricultura biodinâmica, aprender sobre plantas medicinais e debater os limites da chamada sustentabilidade ocidental.
O público que frequenta o espaço é diverso. Há estudantes, moradores locais, ativistas ambientais e arquitetos. Muitos participam dos workshops para literalmente sujar as mãos e reaprender a partir do corpo. É o oposto do escritório envidraçado e climatizado e foi justamente essa ruptura que transformou a própria trajetória de Gutiérrez.
Antes de fundar a Organizmo, ela trabalhava em um prestigiado escritório de arquitetura em Nova Iorque. Durante uma viagem de férias à Colômbia, participou de uma oficina de taipa em Barichara. “No momento em que fiquei descalça, trabalhando com a terra, pensei: o que estou fazendo sentada o dia todo atrás de uma tela?”, relembrou ela ainda em entrevista ao The Guardian. Foi o início de uma guinada radical. Ao herdar um terreno em Tenjo, ela decidiu fundar um centro de aprendizado ecológico voltado para a troca de saberes entre arquitetos, indígenas e comunidades camponesas.
Saberes indígenas e os limites da sustentabilidade financiada
Mas o trabalho da Organizmo não se encerra nos limites do terreno em Tenjo. Com o apoio do Re:Arc Institute, uma organização sediada em Copenhague e financiada pela Fundação Inter IKEA, a equipe tem levado sua atuação a regiões remotas da Amazônia colombiana, onde o gesto de construir se entrelaça com o de preservar.
Na região de Matavén, por exemplo, junto à comunidade Piaroa de La Urbana, a construção de uma escola foi mais do que um gesto de infraestrutura, tornou-se uma estratégia para manter viva uma sabedoria ameaçada. Tecelagem de palmeiras, conhecimento que por muito tempo moldou o cotidiano do grupo, está desaparecendo junto com os mais velhos. A saída encontrada foi criar, com a comunidade, um espaço de aprendizado que transmitisse essas técnicas às novas gerações.
Mais ao sudeste, no departamento de Vaupés, o projeto ganha contornos ainda mais políticos. Lá, jovens indígenas de oito etnias estão sendo formados em audiovisual para documentar, com suas próprias vozes e lentes, os embates que seus territórios enfrentam. Os filmes abordam desde a desconexão entre a liderança política institucional e os modos de governança ancestral, até os rituais, danças e práticas cotidianas que sustentam uma relação viva com a floresta.
Esses projetos ocupam um espaço híbrido, entre arquitetura, ativismo climático e organização comunitária e exemplificam o tipo de iniciativa que a Re:Arc costuma apoiar. No entanto, também levantam debates sobre as contradições desse tipo de financiamento. A IKEA, maior consumidora de madeira do mundo, é frequentemente criticada por seu impacto ambiental, com denúncias que envolvem desde desmatamentos ilegais até o uso de mão de obra forçada. A empresa nega as acusações, afirma ter encerrado contratos com fornecedores problemáticos e diz manter sistemas de auditoria robustos para mitigar riscos.
Embora a Re:Arc Institute raramente destaque seu vínculo com a IKEA, não é difícil enxergar seu trabalho como uma espécie de compensação climática, uma tentativa de redirecionar, ainda que modestamente, parte do capital gerado pelo império global do mobiliário para ações de restauração socioambiental em escala local.
Nos últimos dois anos, a organização destinou cerca de 15 milhões de euros em subsídios a 76 iniciativas espalhadas por mais de 40 países, apoiando desde comunidades indígenas em Bangladesh até projetos de arquitetura comunitária voltados a jovens em Londres. Atualmente, o foco geográfico de atuação está voltado para a América Latina e o Caribe, regiões que concentram cerca de metade da biodiversidade do planeta.
O futuro já esteve aqui
A crítica da Organizmo à sustentabilidade colonialista é também uma crítica à forma como o setor da construção civil se apropriou do discurso ambiental. Muitas vezes, soluções supostamente verdes ignoram contextos locais e impõem tecnologias importadas que não dialogam com a realidade de populações tradicionais.
Na floresta amazônica brasileira, um acontecimento recente reforça a importância dos saberes tradicionais na construção de territórios resilientes. Em março de 2025, a queda de uma árvore centenária no município de Fonte Boa/AM revelou urnas funerárias indígenas enterradas sob o solo de várzea.

O achado, divulgado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, mobilizou arqueólogos e pesquisadores do Instituto Mamirauá, que identificaram sinais de uma antiga ilha artificial construída em meio à várzea. Uma elevação de solo feita com terra, cerâmica quebrada e fibras vegetais, projetada para resistir às cheias do Lago do Cochila e garantir a sobrevivência de quem ali habitava.
Mais do que abrigo, tratava-se de uma estratégia sofisticada de convivência com os ciclos da natureza e, também, de memória. As urnas revelam rituais funerários complexos, integrando ossos humanos com restos de peixes e quelônios, em um gesto que dissolve as fronteiras entre alimento, território e ancestralidade.
Entre os que ajudam a preservar e renovar esses modos de vida está Walfredo Cerqueira, um dos muitos manejadores de pirarucu da região. Ele faz parte de um esforço coletivo das comunidades amazônicas para manter práticas sustentáveis de pesca, um exemplo de que os povos da floresta não apenas conhecem profundamente seus ecossistemas, como desenvolvem estratégias eficazes de preservação, adaptação e governança autônoma.
O manejo do pirarucu, por exemplo, combina conhecimento empírico, regras comunitárias e controle social, os próprios moradores decidem quando e quanto pescar, respeitando o ciclo de reprodução da espécie e garantindo sua permanência no longo prazo.
Esse modelo de ocupação e manejo, resiliente, territorializado e baseado em pactos coletivos, coloca em xeque a noção de que o futuro precisa ser inventado a partir do zero. Em muitos casos, ele já foi vivido, praticado e transmitido por gerações. O que faltou, por muito tempo, foi espaço para que essas experiências fossem reconhecidas, valorizadas e contadas sob outra ótica.
Ao escavarmos a terra, voltamos a ouvir vozes que foram silenciadas. E ao reconstruirmos com elas, como propõe a Organizmo, talvez possamos projetar uma arquitetura que não separa natureza e cultura, vida e morte, técnica e afeto.