Diretora-executiva da Teto Brasil Camila Jordan mostra como a ONG atua em prol de comunidades extremamente vulneráveis a partir de moradias.
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Paula Caires em 20 de maio de 2024 9minutos de leitura
Camila Jordan (Foto: Reprodução/ LinkedIn)
Já nas primeiras palavras é fácil notar uma energia de movimento e força. As frases são ditas com segurança, de forma rápida, sem titubear, como quem sabe exatamente o que quer e onde quer chegar. Foi essa força e certeza que fizeram Camila Jordan, ainda aos 24 anos, se tornar voluntária da TETO Brasil – ONG que há 18 anos trabalha pela superação da pobreza por meio da construção de moradias e projetos de infraestrutura nas favelas mais precárias do país – da qual hoje ela é diretora-executiva. “Sempre tive uma aspiração a seguir uma carreira de impacto positivo, mas não sabia como”. A resposta veio do trabalho dentro das favelas cariocas, no chamado “ombro a ombro” com os moradores e moradoras das comunidades e outros voluntários. “Cresci com esse ímpeto de poder contribuir de alguma forma com o mundo, mas ao mesmo tempo isso sempre gera o desconforto de se deparar com nossos privilégios, pois vivemos em uma sociedade altamente desigual”.
Engenheira ambiental e mestre em política pública, ela mostra que vencer a paralisação, a sensação de impotência diante de desafios tão grandes e complexos, é possível quando nos conscientizamos de que ainda que uma ação individual seja pequena, ela gera uma transformação, não só nos outros, mas em nós próprios. “Essa experiência me trouxe o entendimento sobre cidade, direitos – a falta deles -, cidadania e a importância de agir. Foi um encontro que mudou a minha vida”, diz ela. É nesta dicotomia entre o micro e o macro, o agora e o futuro, a ação e a transformação que a TETO atua.
Em entrevista ao Habitability, ela compartilha as especificidades deste trabalho junto às comunidades de vulnerabilidade extrema e invisibilizadas, que já mobilizou mais de 1,5 milhão de pessoas em trabalhos voluntários pela América Latina.
Como a TETO concilia esses universos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão interligados e interdependentes, que é atuação a longo prazo, nas bases estruturais de impacto macro, e a atuação no micro, nas urgências das comunidades?
Camila Jordan: embora a gente trabalhe para atender emergências, sabemos que as mudanças precisam ser estruturais. São mudanças amplas e complexas que requerem articulação. Para se ter uma ideia, no Brasil, o ciclo de pobreza demora nove gerações para ser quebrado. Mas não podemos esquecer que exatamente hoje existe alguém que mora em um barraco de madeira, que vai dormir no chão gelado, que não tem uma janela e que, se chover, terá sua casa desmoronada. Ter consciência dessa urgência, se indignar e agir diante dela é muito importante porque não existe política pública para esses casos emergenciais.
Paralelamente, trabalhamos com o conceito de desenvolvimento comunitário para que os próprios moradores possam conhecer e batalhar pelos seus direitos, porque a TETO foca nas favelas com as situações mais precárias do país, aquelas sobre as quais ninguém nunca ouviu falar, onde nem as organizações sociais chegaram, além de algumas aldeias indígenas em São Paulo e Quilombos na região nordeste. Então, nesse sentido, fazemos campanhas de comunicação que traga a atuação dessas comunidades tão invisibilizadas para o debate.
Agora vamos começar uma nova estratégia de incidência política a nível mais institucional para que possamos ter uma frente mais ativa na influência de políticas públicas, sempre de acordo com nossa vivência territorial e trazendo as lideranças comunitárias para o debate, fazendo com essa ponte entre os territórios ultra vulnerabilizados e onde as decisões estão sendo feitas e os recursos distribuídos.
Como se dá esse envolvimento da comunidade?
Fotos: Reprodução/TETO Brasil
Camila Jordan: todos os projetos já nascem a partir de um diagnóstico feito por meio de uma metodologia desenvolvida e aplicada pela TETO junto à comunidade. A partir de uma grande coleta de dados em múltiplas fontes, criamos o Mapa de Direitos, uma espécie de Censo, disponível a todos. As próprias comunidades se empoderam desses dados para reivindicar direitos, influenciar decisões e angariar recursos.
A partir desses dados, fazemos o mapeamento territorial utilizando drones porque são comunidades cujas ruas sequer estão no mapa, que não têm CEP. Partimos, então, para a coleta de dados em uma frente de trabalho cívica, também por meio de voluntários, que chamamos de “Escutando as Comunidades (Ecos)”, as enquetes socioeconômicas e, depois, o diagnóstico participativo, onde toda a comunidade é chamada para conhecer os dados coletados. A partir daí desenhamos os planos de ação. Uma coisa é eu ou você, mesmo sendo de outra favela, chegar em um território onde não moramos e no qual não vivemos e traçar um plano de ação. Outra coisa são as prioridades definidas por quem vive aquele dia a dia e sofre as consequências.
Também passamos por um processo de validação. Antes de começar qualquer ação, perguntamos se eles querem trabalhar com a gente, pois se não houver envolvimento da comunidade, a gente não entra. A TETO não trabalha para as pessoas, a gente trabalha com as pessoas. Precisamos do envolvimento comunitário, da corresponsabilização, desse ombro a ombro com os moradores.
Quais os principais insights revelados pelo Mapa de Direitos?
Camila Jordan: temos dados sobre as condições de moradia: 40% delas são barracos, 43% tem chão de terra, 20% das pessoas falam de calor ou frio excessivos, 19% dizem que têm problema de entradas de roedores e insetos, 17% falam sobre infiltração de água e 8% indicam inundação interna. São moradias que, em um raio de raio de 50 km de distância, tem rio, barrancos, lixões ou aterros. São dados que mostram uma grande precariedade habitacional. Também tem dados sobre as áreas de risco e informações que desconstroem a ideia no inconsciente coletivo brasileiro de que famílias pobres têm muitos filhos. O Mapa mostra que em média são três pessoas por família.
As consequências das mudanças climáticas são inquestionáveis, mas elas têm um peso diferente para essas comunidades?
Camila Jordan: as grandes consequências são vividas nas favelas, sejam em situações mais graves, como deslizamentos de terra e inundações, mas também em consequências mais silenciosas. Muitos estudos internacionais mostram a quantidade de pessoas que morrerá por excesso de frio e calor. As questões ambientais elevam a vulnerabilidade a níveis muito altos, por isso também temos trazido a questão para essa realidade.
Países em desenvolvimento têm o desafio de conciliar questões sociais aos desafios ambientais da sustentabilidade, como a corrida global pelo carbono zero. É difícil pensar no meio ambiente quando se tem fome ou se vive em situações tão precárias?
Camila Jordan: minha veia é de engenheira ambiental. Em primeiro lugar, precisamos não separar as temáticas, nem colocá-las na balança, pois, na verdade, todos nós fazemos parte deste ecossistema e existem inúmeras soluções baseadas na natureza que a gente pode e deve aplicar para equilibrar esses dois pontos.
Obviamente, existem limitações tecnológicas. Por exemplo, hoje, o material mais utilizado na construção é o concreto, que tem um índice de emissão de carbono altíssimo. Mas existem esforços na indústria para reduzir essas emissões e muitas outras alternativas surgindo. Precisamos construir moradias, não só no Brasil, mas no mundo, pois a crise habitacional é mundial, mas quais unidades estamos construindo?
Além disso, precisamos cultivar um olhar de articulação intenso, que no Brasil (mas não só aqui) temos dificuldades. Por exemplo, a gente não consegue falar efetivamente sobre urbanização e integração das favelas dentro das cidades.
Essa segregação espacial, econômica, racial e de gênero só será solucionada quando tivermos esse olhar de articulação profunda entre estado e município. No próprio município tem muitas secretarias que acabam atuando de forma isolada. Em moradia, principalmente, pois não vamos sanar o déficit habitacional só construindo novas unidades e isso está mais que provado: o Brasil construiu 6 milhões de unidades através do MCMV (programa de financiamento habitacional do Governo Federal) e o déficit habitacional continua. É preciso uma política nacional de moradia integrada para que se busque solucionar o problema a partir de várias vertentes. Temos cerca de 26 milhões de residências em déficit qualitativo e os casos ultra críticos de pessoas em situação de ruas, o que é impensável em um país rico como o Brasil, porque somos um país extremamente desigual, mas rico, sim.
A TETO já atua no sentido de buscar soluções mais eficientes em materiais e métodos construtivos. Criar aceitação, escala e expandir a adesão a essas novas soluções passa por quais desafios? Há uma questão cultural relacionada?
Fotos: Reprodução/TETO Brasil
Camila Jordan: de forma geral, mudanças culturais levam tempo e precisam de intencionalidade. Ou seja, precisa haver vontade de provocar a mudança, começando com a educação das pessoas. Um exemplo que achei fantástico em relação à intencionalidade de provocar mudança comportamental aconteceu em Rotterdam, na Holanda, uma cidade que está abaixo do nível do mar. Juntamente às iniciativas de urbanismo social para tornar a cidade resiliente, tornaram obrigatório ensinar as crianças a nadarem de roupa, para que elas desenvolvessem essa habilidade e conseguissem garantir a sobrevivência em caso de inundação. Outro exemplo foi no apagão no Brasil. Eu cresci nesta época, fui ensinada a usar a energia com consciência e até hoje me preocupo em apagar a luz ao sair de um ambiente.
Na TETO, em específico, buscamos soluções de chegar de forma mais efetiva a essas famílias. Estamos usando a madeira, que no Brasil não é muito utilizada, mas em outros países, como Chile e Estados Unidos, se usa muito. E temos testado outros materiais com parceiros para trazer também mais durabilidade, como o wood frame – sistema construtivo executado com peças de madeira com maior tratamento, e o steel frame – sistema de construção a seco que usa tipos leves de aço. Além do material, esse sistema reduz o tempo de obra, que sabemos que é uma das coisas mais significativas nos custos da construção.
E, por fim, temos um projeto piloto com bloco de polipropileno reciclado. A cada moradia reciclamos duas toneladas de plásticos. E a casa em si tem várias características positivas em termos de performance de calor. Como são blocos ocos, o ar tem dupla função: no calor, ele sobe e sai pelos orifícios na parte superior. Ao mesmo tempo, como é uma câmera de ar, no frio, o calor se mantém.
O uso da madeira e do barro nos processos construtivos são ancestrais, mas suas vantagens vêm sendo “redescobertas”. Considerando a premissa do engajamento comunitário vocês têm aproveitado esses saberes?
Camila Jordan: sempre buscamos agregar e trabalhar em conjunto, articulando os conhecimentos da TETO com os dos voluntários e dos moradores locais. A inovação pode vir de qualquer lugar. Ela tem muitas caras e muitas cores. Precisamos estar atentos para trabalhar isso em varias vertentes. Em territórios periurbanos, como as comunidades quilombolas e indígenas, a gente replica as soluções que já existem, por exemplo, tratamento de águas cinzentas. No centro-oeste, por exemplo, construímos uma creche em conjunto com outra organização que faz a construção em barro.
Como se dá esse processo de empoderamento? Por quanto tempo a TETO permanece na comunidade?
Fotos: Reprodução/TETO Brasil
Camila Jordan: nosso trabalho é de médio a longo prazo. Só em algumas situações emergenciais que atuamos de forma mais pontual. Isso porque trabalhamos com comunidades com alto nível de vulnerabilidade e levamos um tempo para criar essa mobilização comunitária. Além disso, trabalhamos muito com a criação de laços de confiança porque são comunidades que já passaram por tantos ciclos de promessas não cumpridas, que não acreditam. Precisamos ter essa presença contínua para tecer esses laços. Acreditamos que os nossos programas e projetos são ferramentas para o desenvolvimento das capacidades comunitárias e esse é um processo contínuo.
Você poderia citar um caso ou evidência de sucesso desse processo de empoderamento?
Camila Jordan: uma das histórias das quais me orgulho muito, até porque eu mesma era voluntária lá, é da Vila Beira Mar, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro/RJ, onde estamos há quase 10 anos. Uma das lideranças da comunidade, a Zélia Maria Marques, hoje tem seu próprio Instituto, o Coletivo Vila Beira Mar. Ela já tinha uma validação da comunidade, mas fazia o que ela conseguia. Na medida em que a TETO entrou, a rede dela foi se expandindo a cada projeto, a cada mutirão. Ela foi criando novas capacidades, mesmo as dela, de liderança e visão.
Você fala muito dos voluntários. Eles são fundamentais para a realização dos projetos, com a criação desses laços de confiança e o processo de escuta ativa?
Camila Jordan: voluntariado também é super importante principalmente quando se fala em mudanças culturais. O perfil do voluntário no Brasil é de uma pessoa mais velha que faz trabalho a partir de sua comunidade religiosa. Temos pouco a cultura do jovem voluntário. E como uma organização que já mobilizou mais de 100 mil pessoas em atividades voluntárias e quer continuar, estamos cada vez mais com foco na nova geração. É uma mudança de paradigma também, crescer com esse senso de cidadania e ter a capacidade de sair do ativismo digital para o ativismo na prática.
Casos de depressão e crises de ansiedade são realidades que mostram a vulnerabilidade mental dos jovens extremamente conectados. O trabalho voluntário seria uma forma de encontrar propósito e, em certa medida, transformar esse quadro?
Camila Jordan: a gente vê que não só as soft skills das pessoas são desenvolvidas, mas que o voluntariado também traz bem-estar físico e mental, porque o jovem sai de casa, conhece pessoas… é algo que gera sensação positiva, ainda que em contexto de desafios, muitas vezes, até de choque. Mas ele olha e vê que em um final de semana ele conheceu uma família, a abraçou, comeu junto com ela… é um impacto muito transformador para todos que participam.
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