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Calor extremo escancara desigualdades no acesso ao lazer, diz Matheus de Vasconcelos Casimiro
Iniciativas ajudam a promover equidade na disponibilização de espaços públicos abertos acessíveis a todas as camadas sociais.
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Ana Cecília Panizza em 11 de abril de 2024 7minutos de leitura
Os problemas causados pelo aumento da temperatura do planeta têm diversas faces. As mais evidentes e visíveis são os impactos econômicos e sociais em áreas como habitação, já que populações inteiras de regiões litorâneas, por exemplo, são obrigadas a abandonar suas casas em função do aumento do nível do mar, resultante do derretimento de calotas polares. Eventos climáticos extremos (furacões, secas, inundações) também levam ao êxodo de comunidades – são os refugiados do clima, principalmente os mais pobres. Na saúde, as mudanças climáticas aumentam o risco de doenças infecciosas graves como dengue, malária e febre do Nilo, prejudicando também quem tem menos recursos e acesso a hospitais e remédios. Mas outras faces do aquecimento global, menos visíveis, também atingem fortemente os mais pobres: as desigualdades no acesso ao lazer.
Iniciativas para promover equidade no lazer e, assim, proporcionar descanso, divertimento e bem-estar para as populações de todas as camadas sociais são fundamentais em momentos de calor atípico como o vivido atualmente. Dados do observatório europeu Copernicus apontaram que o ano de 2023 foi o mais quente já registrado. As temperaturas chegaram aos níveis mais altos em 125 mil anos. E 2024 tende a ser ainda pior. Janeiro já registrou a temperatura global mais alta para o mês.
Desigualdades no acesso ao lazer, altos e baixos
Enquanto os termômetros estão nas alturas, opções de lazer para amenizar os efeitos do calor extremo para a população estão em baixa. Grandes cidades como São Paulo, sem praia e com rios enterrados ou poluídos, oferecem poucos lugares a céu aberto nos finais de semana e feriados, o que escancara o peso da desigualdade social. Um agravante: a falta de árvores e o excesso de prédios e asfalto aumentam a sensação térmica em locais da cidade como Avenida Paulista, Minhocão e Vale do Anhangabaú. Com isso, as pessoas evitam esses lugares e recorrem a parques: por serem arborizados, eles mantêm o ambiente mais fresco e úmido, mas não dão conta do alto número de visitantes. São, assim, espaços lotados.
Nos bairros mais distantes da região central paulistana também há poucas opções públicas de recreação, o que reforça a disparidade no acesso ao lazer. “Há uma desigualdade muito grande em diferentes distritos, uma concentração muito pequena em periferia”, avalia Matheus de Vasconcelos Casimiro, arquiteto e urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde é professor e pesquisador. Ele fez mestrado sobre projetos dos parques públicos municipais de São Paulo e doutorado acerca da questão ambiental no planejamento urbano da capital paulista.
A falta de opções de lazer é evidenciada pela pesquisa “Viver em São Paulo: qualidade de vida”, feita em dezembro de 2023 pela organização Rede Nossa São Paulo para revelar as percepções dos moradores da capital sobre qualidade de vida. A visão majoritária dos respondentes da pesquisa, segundo a Rede Nossa São Paulo, é de que, no bairro em que moram, a prefeitura tem feito pouco ou nenhum investimento nas nove áreas avaliadas pelo levantamento. Na resposta sobre “Espaços públicos (parques, praças, quadras esportivas)”, 16% dos participantes da pesquisa avaliaram que foi feito muito investimento, 49% pouco investimento, 31% nenhum investimento e 4% não souberam ou não responderam. O resultado foi similar para a área “Transporte”: 14% muito investimento, 51% pouco investimento, 31% nenhum investimento; 4% não souberam ou não responderam.
Lazer é direito constitucional
Em grande parte dos municípios brasileiros a situação é similar à de São Paulo: há insuficiência de equipamentos esportivos, parques e outras opções de lazer em locais abertos e arborizados. Essa falta de investimentos pode estar ligada à visão de que lazer é secundário diante de necessidades urgentes para o país combater seus elevados níveis de desigualdade social. Assim, governos priorizam áreas sensíveis como saúde e educação ao alocarem recursos.
Por outro lado, lazer é um direito. Os artigos 6º e 215º da Constituição Federal reconhecem a todos os brasileiros o direito à cultura e ao lazer para assegurar mais qualidade de vida e desenvolvimento pessoal e social aos cidadãos. Além disso, espaços para atividades físicas, sociais, culturais e de lazer promovem o convívio entre diferentes grupos sociais, o que é necessário para o desenvolvimento da tolerância e da cultura de paz.
Para Matheus Casimiro, é preciso reconhecer a importância do lazer como política pública relevante para as cidades. “Muitas vezes, em detrimento de outras pastas – como educação e saúde – o lazer é desvalorizado. Se precisar fazer corte de orçamento, é feito na promoção do lazer. É importante reconhecer o lazer como uma pauta importante de civilidade e construção de cidadania”, destaca o arquiteto.
Articular e integrar
Casimiro aponta um caminho para ampliar a oferta de espaços: articular a produção de lazer com outras políticas setoriais, usando um mesmo local para diferentes usos por meio de integração. Um exemplo é a instalação de espaços educacionais que também oferecem uma praça aberta ao público. Outra ideia é criar uma biblioteca integrada a um centro esportivo. Assim, em um mesmo lugar, há diferentes atividades e possibilidades. “Quando a gente tem espaços mais integrados, mais articulados, conseguimos otimizar a aplicação de recursos”.
Nesse sentido, o arquiteto cita os Centros Educacionais Unificados (CEUs), em São Paulo. “São bem-sucedidos por isso: em um mesmo espaço eles conseguem articular educação, lazer, esporte, fazer vários tipos de uso em um mesmo espaço e acabam sendo referência no bairro em que são colocados”. Para ele, o CEU é referência da produção de lazer público periférico em razão da articulação dos diversos setores e da integração entre diversas secretarias do município. “É super desafiante, mas é bem-sucedido nos bairros em que são implantados e tem bom funcionamento, tem boa articulação, atingindo grande parte da população”.
Segundo Casimiro, a iniciativa privada pode ajudar a criar mais espaços de lazer em áreas periféricas. “É uma possibilidade de investimento dentro dessa linha”. Porém, ele alerta para o valor dos ingressos cobrados, que precisam ser acessíveis para quem vive na região. E lembra opções como as oferecidas pelas redes do SESC (Serviço Social do Comércio) e do SESI (Serviço Social da Indústria) em todo o Brasil, que têm preços mais populares. “São equipamentos mais acessíveis para a população de todas as rendas. Os SESCs, por exemplo, muitas vezes se encontram na periferia e podem ser mais facilmente acessados”.
O case Medellín, contra o aquecimento e as desigualdades no acesso ao lazer juntos
Outro grande município da América do Sul, Medellín, segunda maior cidade da Colômbia, é um caso de sucesso na instalação de equipamentos de lazer públicos, abertos e democráticos, que contribuíram para reduzir as desigualdades no acesso ao lazer. Foi a partir de um projeto ousado, que ajudou a reduzir a criminalidade na cidade – já foi considerada uma das mais violentas do mundo. “De exemplo internacional, de muito boas práticas nesse sentido, o caso clássico é o de Medellín, sobretudo a partir dos anos 2000, quando algumas gestões conseguiram promover um sistema de criação de espaços públicos super variados”, explica Casimiro. Deu tão certo que os índices de violência despencaram e Medellín passou a ser reconhecida como cidade-modelo em urbanização.
O arquiteto cita a criação do programa Parques Lineares em afluentes do Rio Medellín, o principal do município, por meio de um sistema de integração entre áreas verdes. Segundo a definição do município, parques lineares são “espaços verdes, situados ao redor dos córregos, com possibilidades de adequação como espaços públicos naturais, para a conexão, a conservação da biodiversidade dos ecossistemas, a descontaminação das microbacias e para o desfrute da cidadania e a recreação passiva, ao ar livre e em contato com a natureza (…). São espaços com funções ambientais e ecológicas e, por sua vez, é o lar de diversidade de árvores nativas, refúgio de aves e mecanismo para proteger ou recuperar ecossistemas nativos dentro da cidade e se constituem em elemento integrador que permitem um balanço entre a conservação ambiental e a recuperação de espaços. São também espaços abertos, que provém lugares ao ar livre, aptos e disponíveis para o descanso e a recreação sã e se convertem em aulas abertas e permanentes de educação ambiental para que as comunidades valorem e cuidem da água, das árvores, da fauna e para que desenvolvam ações amigáveis com o meio ambiente”.
Já o Parque Botânico do rio Medellín tem objetivo de incentivar a população a voltar suas atenções e olhares para as águas, além de requalificar os espaços urbanos e criar um ambiente agradável e arborizado.
Medellín também colocou em prática projeto de parques-bibliotecas, que são complexos urbanos de arquitetura moderna que têm como edificação central uma biblioteca com equipamentos tecnológicos modernos, amplos espaços públicos e áreas verdes, colocando em prática o conceito de receber moradores de baixa renda e assim reverter as desigualdades no acesso ao lazer.
Além de ter feito Medellín se reerguer, o lazer a céu aberto ajuda a refrescar os ambientes por lá. O clima da cidade é ameno por sua localização – Cordilheira dos Andes –, mas a temperatura tem se elevado em função do aumento da urbanização, que expôs o município ao efeito de ilhas de calor.
Para reverter esse impacto, Medellín implantou o programa de corredores verdes, que já deu resultado: a temperatura caiu em 2° C por toda a cidade, segundo a prefeitura. O projeto inclui mais de 30 corredores que conectam calçadas de ruas recém-arborizadas, jardins verticais, cursos d’água e parques. Começou em 2016, com o plantio de 120 mil plantas e 12,5 mil árvores. Em 2021 atingiu-se a marca de 2,5 milhões de plantas e 880 mil árvores plantadas.
Nos Estados Unidos, os municípios de Miami, Phoenix e Los Angeles, assim como Santiago (Chile), Freetown (Serra Leoa) e Atenas (Grécia), criaram o cargo de chief heat officer (CHO), ou secretário de calor, em português. O chief heat officer trabalha para unificar as políticas municipais contra o calor extremo por meio de medidas como redesenhar áreas verdes, organizando respostas às emergências climáticas no curto e longo prazos. A criação do cargo é sinal de que governos se esforçam para implantar políticas públicas com intuito de reverter o aquecimento global e, a reboque, minimizar as desigualdades no acesso ao lazer.
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