Em um cenário de economia desaquecida, juros elevados e desaceleração no setor da construção civil, a criação da nova faixa de renda no programa habitacional do Governo Federal Minha Casa, Minha Vida é, por um lado, uma alavanca econômica. Por outro, no entanto, acende o debate sobre o papel do programa enquanto política de habitação popular e traz preocupações sobre sua sustentabilidade no médio e longo prazos.
Na prática, essa nova modalidade busca preencher a lacuna deixada pelo programa anteriormente junto à classe média, que ficava entre as classes de baixa renda, subsidiadas pelo programa, e a de renda alta, que tem condições de arcar com a compra do imóvel. Segundo dados da RAIS 2024, analisados pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC), a Faixa 4, que engloba famílias com renda bruta mensal de R$ 8 mil a R$ 12 mil, é uma resposta estratégica do governo para atender a uma demanda reprimida de aproximadamente 1,4 milhão de famílias da classe média que passam a poder financiar imóveis de até R$ 500 mil, com prazos de pagamento que chegam a 35 anos e taxas de juros limitadas a 10% ao ano, abaixo da média de mercado.
Para a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), a nova faixa poderá estimular não apenas o mercado imobiliário, mas a economia como um todo. A expectativa é de crescimento de 2,3% no setor da Construção Civil ainda em 2025. Embora o setor tenha crescido 4,3% em 2024, o que elevou seu PIB para R$ 359,5 bilhões, a taxa Selic chegou a 14,75%, o maior nível em quase 20 anos. Esse cenário pressiona o custo do crédito, tornando-o mais caro e menos acessível, e impõe desafios ao setor.
O economista e professor da Fundação Dom Cabral (FDC), Eduardo Menicucci, pondera, no entanto, que os impactos esperados no mercado imobiliário são distintos, a depender da região do País. Em grandes centros urbanos, como capitais e regiões metropolitanas, pode haver uma possível pressão sobre os preços dos imóveis e dos insumos da construção civil. “Há risco de inflação localizada, tanto nos valores dos imóveis, quanto nos custos de materiais e serviços”. Ele explica que o desequilíbrio ocorre quando a demanda cresce mais rapidamente do que a oferta, encarecendo terrenos, mão de obra e materiais, o que pode comprometer a acessibilidade dos imóveis. Para mitigar esses efeitos, o economista defende ações em quatro frentes:
- Planejamento urbano integrado, com disponibilidade de áreas para construção;
- Parcerias público-privadas para acelerar novos empreendimentos;
- Apoio à cadeia produtiva da construção, para mitigar gargalos de oferta.
Por outro lado, o efeito da adesão da faixa 4 pode ser bem diferente nas cidades de pequeno e médio portes. Nesses locais, a chegada de novos empreendimentos costuma gerar impactos positivos imediatos. “O programa estimula a geração de empregos locais, melhora a infraestrutura e pode até frear o êxodo rural, contribuindo para a retenção populacional”, observa o economista.
Minha Casa, Minha Vida, motor econômico
Os impactos do Minha Casa, Minha Vida ainda podem ir além. A expectativa é de que a medida estimule toda a cadeia produtiva do setor imobiliário e da construção civil, com efeitos positivos sobre a economia. “O setor imobiliário é um dos maiores geradores de empregos diretos e indiretos do País. Com o aumento da demanda por imóveis, cresce também a movimentação em cartórios, escritórios de advocacia, imobiliárias e uma série de serviços associados”, afirma o presidente do Conselho Regional dos Corretores de Imóveis em São aulo (CRECI-SP), José Augusto Viana Neto. Segundo ele, esse efeito multiplicador funciona como um motor econômico, capaz de irradiar ganhos para diversos setores.
O diagnóstico é compartilhado pelo economista da Fundação Dom Cabral, que ressalta o peso da construção civil na economia brasileira. “O setor responde por 6% a 7% do PIB e tem uma das maiores capacidades de geração de empregos. Seu efeito multiplicador é robusto, com impacto direto em cadeias como siderurgia, cimento, vidro, transporte e serviços”, explica.

Para o economista da Dom Cabral, a entrada da Faixa 4 deve destravar projetos imobiliários que estavam represados por falta de demanda financiada. A construção de unidades habitacionais movimenta diretamente o setor da construção civil, intensivo em mão de obra, e impulsiona toda a economia local. Comércios, prestadores de serviços, imobiliárias e pequenos fornecedores registram aumento na demanda, gerando um ciclo de desenvolvimento. Além disso, os empreendimentos, frequentemente, trazem melhorias na infraestrutura urbana, como pavimentação de ruas, expansão das redes de água, esgoto, energia elétrica e transporte público. Avanços que impactam diretamente a qualidade de vida da população e a valorização dos bairros onde os projetos são implantados. O aquecimento não se limita à construção, setores como móveis, eletrodomésticos e serviços urbanos também tendem a se beneficiar. “O impacto na geração de renda e no consumo local será especialmente forte em regiões com maior presença da classe média”, avalia ele.
Essa capacidade de irrigar diferentes setores da economia torna a Faixa 4 ainda mais relevante em um cenário de juros elevados. “O Minha Casa Minha Vida tem mostrado resiliência mesmo com taxas altas, porque opera com juros pré-fixados, bem abaixo dos praticados pelo mercado”, explica o VP comercial e de marketing da MRV&CO Thiago Ely. “Isso fortalece a cadeia produtiva, gera emprego e movimenta a economia”, acrescenta.
Um fôlego para a classe média
A classe média brasileira enfrenta um cenário econômico adverso, com o poder de compra corroído pela inflação persistente e custos elevados de alimentos, transporte e serviços essenciais. O desemprego, embora em leve queda, ainda está em 7% no primeiro trimestre de 2025, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, limitando o acesso ao crédito e ampliando a insegurança financeira das famílias.
A política monetária rígida adotada pelo Banco Central para conter a inflação tem reforçado as dificuldades. A taxa Selic chegou a 14,75% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), podendo subir para 15% ainda em 2025, de acordo com as projeções do mercado. O impacto direto dessa alta é sentido especialmente no crédito imobiliário, que se torna mais caro e, portanto, restrito. É nesse cenário que a recém-criada Faixa 4 do Programa Minha Casa Minha Vida surge como alternativa para a classe média, que está espremida entre o encarecimento dos financiamentos tradicionais e a ausência de políticas públicas específicas.
O foco da mudança do programa Minha Casa, Minha Vida é justamente as condições de crédito, oferecendo financiamento com juros pré-fixados que, com subsídio do FGTS por meio do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), fica entre 4% e 10% ao ano, enquanto no mercado a taxa média é de cerca 12%.
Para Neto, a medida tem o potencial de destravar o mercado imobiliário. “A Faixa 4 representa um importante estímulo, sobretudo em períodos de economia desaquecida. É verdade que nos últimos anos houve um movimento em direção à liquidez, mas a segurança e o valor de longo prazo de um imóvel continuam sendo um atrativo para muitas famílias “, destaca. “A Faixa 4 busca justamente reduzir a barreira de entrada, tornando o sonho da casa própria mais tangível para esse segmento”.
Segundo Ely, “a Faixa 4 representa para a classe média uma alternativa mais segura e previsível para financiar o imóvel, antes inacessível pela via do crédito facilitado”. Cerca de 13% do estoque de apartamentos da construtora MRV, líder em vendas de imóveis pelo programa, está enquadrado na Faixa 4, “o que reforça nosso compromisso com a democratização da casa própria”, acrescente Ely, destacando a competitividade das taxas de juros frente aos financiamentos tradicionais, especialmente em um momento em que o aluguel acumulou reajustes superiores a 13% em 2024.

Com a mudança, a MRV, que já tem cerca de 90% das vendas líquidas vindos do programa do Governo Federal, está “adaptando o portfólio para incluir imóveis que atendam às expectativas desse público, como unidades em localizações estratégicas e com diferenciais de acabamento, sem perder o foco em acessibilidade. Além disso, reforçamos parcerias com programas estaduais complementares, que oferecem subsídios regionais e otimizamos nossos processos para garantir agilidade na entrega”, conta o executivo.
A diretora executiva comercial da MRV&CO no Rio de Janeiro Viviane Sieiro afirma que a mudança vai impulsionar ainda mais as vendas e contribuir para a redução do déficit habitacional no Brasil. “Há uma parcela significativa da população que não se encaixava nas faixas que existiam até então e que ainda enfrentava dificuldades para financiar um imóvel. Com o anúncio, poderemos atender a um público que hoje acaba ficando refém de taxas de juros muito altas no financiamento tradicional”, conclui.
Minha Casa, Minha Vida: expansão ou mudança de foco?
Com forte viés social, o Minha Casa Minha Vida foi um dos pilares da política habitacional brasileira desde sua criação em 2009, priorizando o acesso de famílias de baixa renda à moradia digna por meio de subsídios diretos, juros reduzidos e condições facilitadas de pagamento. A entrada da Faixa 4 inaugura uma nova etapa ao ampliar o rol de beneficiários. Embora não contemple os mesmos benefícios, essa ampliação pode reduzir o foco nas faixas mais vulneráveis?
Segundo levantamento da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no Brasil atingiu 6,9 milhões de moradias em 2022, sendo 74,5% desse total concentrados em famílias com renda de até dois salários mínimos. Esses números mostram que a maior carência ainda está entre as camadas mais pobres da população, justamente aquelas contempladas nas Faixas 1, 2 e 3 do programa.
“O desafio de equilibrar as diferentes frentes do Programa, como a Faixa 4 sem subsídio direto, é complexo”, pondera o presidente do CRECI-SP. Ele enfatiza que “o segredo está em garantir políticas públicas e condições financeiras que atendam às necessidades variadas dos diferentes segmentos da população, mantendo a sustentabilidade do programa a longo prazo”. Para ele, o sucesso do programa depende da complementaridade entre as faixas. “A Faixa 4 não compete com as outras, mas as complementa, garantindo que o programa se torne mais inclusivo e abrangente em suas soluções para o problema da moradia no Brasil.”

O presidente do CRECI-SP também faz um alerta sobre a sustentabilidade do modelo de financiamento. “A fuga de investidores da poupança e os saques sucessivos precisam ser monitorados de perto”, diz. Ele se refere ao fato de que boa parte dos recursos que alimentam o crédito imobiliário vem justamente da poupança popular. Quando há retiradas em massa, a capacidade dos bancos de conceder novos financiamentos diminui.
Dados recentes do Banco Central reforçam essa preocupação. A poupança registrou saldo negativo de R$ 6,418 bilhões em abril, o pior resultado para o mês desde 2022, quando os saques superaram os depósitos em R$ 9,877 bilhões. No acumulado de janeiro a abril de 2025, as retiradas líquidas somam R$ 52,110 bilhões, reflexo do orçamento das famílias pressionado e da busca dos investidores por aplicações mais rentáveis, estimulada pelos juros elevados.
O impacto já aparece nas projeções do setor. Um levantamento do próprio Banco Central, referente ao segundo trimestre de 2025, indica que os bancos seguem adotando critérios mais rigorosos na concessão de financiamentos imobiliários. A Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) projeta uma retração de 10% no volume de financiamentos neste ano, após dois anos consecutivos de crescimento. “Será necessário fazer uma gestão estratégica dos recursos e, no longo prazo, diversificar as fontes de financiamento para garantir a sustentabilidade do programa”, reforça Neto, do Creci-SP.
Para o economista Menicucci, o governo tem recorrido ao Minha Casa, Minha Vida como um instrumento contracíclico, ou seja, uma forma de estimular a economia em momentos de desaceleração. “Recentemente ouvi uma expressão que ilustra bem isso: anabolizantes econômicos. Essa é uma forma de estimular a economia através de medidas ‘exógenas’, que ajudam no presente, mas podem comprometer o futuro”, ressalta.
Na prática, embora a Faixa 4 represente um avanço na inclusão da classe média no crédito habitacional facilitado, sua efetividade estará diretamente condicionada à melhora do ambiente macroeconômico. Estabilidade nos juros, controle da inflação e a diversificação das fontes de financiamento serão decisivos para que o programa cumpra seu papel, sem comprometer seu equilíbrio financeiro — e sem perder de vista sua função social.
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Obstáculo
O desenho adotado, uma combinação de recursos do FGTS e do SBPE, esbarra hoje no maior obstáculo ao crédito no País: os juros elevados, que pressiona o custo dos financiamentos imobiliários, mesmo para linhas que contam com juros abaixo do mercado. O resultado é prestações mais altas e menor capacidade de endividamento para as famílias. “O alto custo do crédito reduz a atratividade, especialmente para as famílias da Faixa 4, que contam com menos subsídios”, alerta Menicucci. “Quando o financiamento fica mais caro, há um desalinhamento entre a capacidade de pagamento das famílias e os preços dos imóveis. Isso pode limitar o alcance da expansão proposta.”
Nesse cenário em que o custo de vida segue pressionado pela inflação de 5,52% nos últimos 12 meses até abril de 2025 (IBGE), o poder de compra das famílias da Faixa 4 fica ainda mais fragilizado. Com despesas básicas em alta, dedicar parte significativa da renda ao pagamento do financiamento imobiliário torna-se um desafio, elevando o risco de atrasos e, consequentemente, de inadimplência.
Em fevereiro de 2025, a taxa de inadimplência do crédito direcionado, modalidade que inclui os financiamentos habitacionais do MCMV, subiu para 1,55%. No mesmo período, o índice geral do Sistema Financeiro Nacional alcançou 3,26% de contratos em atraso. Embora ainda abaixo de patamares críticos, os números indicam uma trajetória de alta que merece atenção.
O alerta vem dos próprios especialistas do setor. “A sustentabilidade financeira das famílias da Faixa 4 é uma questão central. O alto custo de vida pode aumentar o risco de inadimplência, exigindo políticas de crédito responsáveis e educação financeira contínua para os mutuários”, ressalta o presidente do CRECI-SP. “O equilíbrio entre o acesso ao financiamento e a capacidade de pagamento é essencial para mitigar esses riscos e garantir a estabilidade do mercado”.
Mesmo diante dos desafios econômicos enfrentados pelas famílias em 2025, o Minha Casa, Minha Vida continua exercendo papel relevante no mercado imobiliário. No primeiro trimestre do ano, o programa respondeu por mais da metade dos lançamentos e vendas de imóveis no Pís, conforme dados da CBIC. Esse protagonismo reforça não apenas a importância social do programa, mas também sua função como motor econômico.
Se houver um trabalho coordenado entre governo, setor privado e instituições financeiras para garantir a sustentabilidade da expansão do programa, ele pode representar uma alavanca para a economia, gerando empregos e fomentando o crescimento econômico em diversas regiões do País.