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Gabriela de Matos: África é inspiração e modelo para o futuro do habitar
Arquiteta brasileira premiada, Gabriela de Matos fala sobre Afrofuturismo e como o continente africano ensina inovação e sustentabilidade.
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Camila de Lira em 23 de maio de 2022 7minutos de leitura
Francis Keré, Mariak Kamara, David Adjaê… A arquitetura africana está ganhando reconhecimento no mundo todo. No Brasil, já faz algum tempo que esses estilos de construção fazem sucesso. Para ser mais exatos, três séculos. O jeito de criar africano está nas raízes do País e, para a arquiteta Gabriela de Matos, estará no nosso futuro também.
Eleita a arquiteta do ano em 2020 pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) e criadora do projeto Arquitetas Negras, Gabriela pesquisa as influências africanas nas construções brasileiras e procura sempre estar de olho nas inspirações do continente vizinho.
O resultado vai muito além do design ou do uso de materiais sustentáveis. “Para analisar a arquitetura afrobrasileira é preciso olhar para além dos elementos e dos formatos característicos. Não é só isso! É um jeito de fazer e uma forma de pensar, que é, principalmente, o comunitário”, falou Gabriela em entrevista exclusiva ao Portal Habitability.
Na conversa, que você confere a seguir, Gabriela mostra também como a arquitetura pode ser aliada na luta contra a desigualdade social e explica as motivações que a levaram a criar o projeto Arquitetas Negras, que mapeia a produção de arquitetas negras no Brasil e cria uma rede entre elas.
O projeto, iniciado em 2018, está criando um verdadeiro catálogo de produção no País, servindo também de inspiração para jovens negros que querem entrar no mercado.
Gabriela, seus trabalhos olham para as raízes indígenas e africanas das construções brasileiras. Como você imagina o futuro da habitação?
Gabriela de Matos – Toda vez que me faço essa pergunta, me vejo no movimento de olhar para o passado. E é muito louco isso, já que parece paradoxal quando falamos de projetar o futuro. Olho também para a contemporaneidade, principalmente para aqueles que constroem e criam em um lugar geográfico e social próximo ao nosso. Olho o que está sendo feito na África, com nomes como Francis Keré e Mariam Kamara.
A inspiração vem também de olhar para esses lugares, com questões de classe e raciais muito próximas com as que o Brasil enfrenta.
Quando olho para o Brasil, faço esse resgate mais cronológico e histórico para saber como as pessoas se instalaram aqui, lidando com escravidão, colonização, assuntos que a gente lida até hoje. Fico vendo como as pessoas moraram aqui e traziam soluções sem agredir a natureza, usando recursos que estavam próximos.
Acredito que eu penso no futuro a partir de uma vontade, não de inventar tudo do zero, mas considerando o que nós podemos fazer, o que já fizemos e como podemos assimilar novas tecnologias no processo.
Para mim, o futuro já acontece nesse momento, a gente já precisa pensar em soluções ligadas a questões climáticas, sociais e raciais. Por isso não consigo pensar no futuro como um lugar distante.
Quais são os arquitetos contemporâneos que mais te inspiram?
Gabriela de Matos – São muitas inspirações, e inspirações gigantes. O Keré, por exemplo, ganhou o Pritzker deste ano. E também tem o [David] Adjayé, que tem um prêmio quase no mesmo patamar.
São dois arquitetos muito diferentes em estilo, mas ambos seguem o caminho de trazer técnicas tradicionais da estética africana em suas produções. E temos no Brasil também.
O Adjayê tem uma história interessante: ele estudou em Londres, fez a trajetória dele na Europa,mas, em um dado momento, ele para a produção dele e volta para a África, viajando pelo continente inteiro para pesquisar e catalogar a arquitetura africana.
A partir daí, ele traz essas referências nos trabalhos dele. Esse momento chega. E não é preciso ser cobrado, porque demora para ter essa identificação. Para mim esse momento [de usar as referências africanas] veio conforme eu fui me reconhecendo como mulher negra e como isso implicava na minha vida.
Foi então que entendi que não poderia dissociar a minha produção arquitetônica das referências africanas.
A busca pela sustentabilidade levou a entrada de técnicas construtivas vistas como inovadoras e sustentáveis, mas que, na verdade, são apenas uma revisitação a técnicas ancestrais. Um exemplo disso é a escola de Bambu em Bali. Como isso se liga a essa sua visão de retomar o modo de construir africano?
Gabriela de Matos – Essa é a coisa da colonização, né? Ela faz com que as pessoas percam as suas referências e trace um outro horizonte.
Aquele grupo de pessoas sempre construiu com bambu, porque o bambu sempre esteve disponível. As pessoas foram treinadas e são sábias para construir com bambu e, de repente, vem os colonizadores e trazem a alvenaria. E a alvenaria vira o novo moderno. Depois o concreto armado. E precisa alguém de fora voltar a olhar para o bambu para ver que, no final das contas, o povo dali é quem sempre soube construir.
Aqui no Brasil existe a escola do Bambu, feita pelo mestre Lúcio Ventania. Ele não só planta muitas espécies de bambu, como ensina as pessoas a tratá-lo. Fora isso, ele tem uma capacitação da comunidade que vai desde crianças, passando, principalmente, pelas mulheres.
Existe uma microeconomia sendo pensada a partir do uso do bambu na construção, no design e na arquitetura.
E isso me interessa muito: essa forma de fazer, mais que o design ou a imagem. Essa forma de fazer que está ligada a uma preocupação ambiental e social, é uma forma de fazer ligada a um formato africano, porque você vê em várias culturas africanas, em várias regiões diferentes, as pessoas produzindo dessa forma. Para analisar a arquitetura afrobrasileira é preciso olhar para além dos elementos e dos formatos característicos. Não é só isso! É um jeito de fazer, uma forma de pensar que é, principalmente, o comunitário.
Quais são as construções ancestrais brasileiras e como elas podem inspirar a arquitetura de hoje?
Gabriela de Matos – Impossível não falar da arquitetura indígena. Elas têm uma diversidade incrível de materiais, porque muda conforme a região e com os recursos disponíveis no lugar.
Muda também a configuração, de como aquela comunidade se relaciona com o meio. Você tem comunidades indígenas onde tem uma casa só, tem outras arquiteturas em que as casas são divididas em vários núcleos. Algumas estão de uma forma mais circular, outras mais espalhadas.
Isso do formato circular é possível também ver na forma de organização espacial dos quilombos e dos terreiros de Candomblé. É uma diversidade enorme de se organizar espacialmente.
Em termos de sistema construtivo, temos a taipa de pilão. Temos o adobe [uma mistura de barro cru, areia e fibra vegetal]. São técnicas vistas na África e que constituem também boa parte da arquitetura colonial brasileira.
A gente tem reboco hoje em dia, mas se você descascar, vai chegar a uma técnica construtiva que é 100% africana.
No seu discurso depois de receber o prêmio Arquiteta do Ano do IAB-RJ, você comentou que a arquitetura deve ser uma ferramenta para diminuir desigualdades sociais. Como é possível tornar a arquitetura uma aliada da igualdade?
Gabriela de Matos – A arquitetura pode ser uma ferramenta para diminuir desigualdades. A arquitetura, primeiro como campo de conhecimento, pode ajudar a diminuir desigualdades.
Como espaço de conhecimento, a arquitetura que conhecemos foi construída na perspectiva eurocêntrica e ignorou o conhecimento das pessoas negras e indígenas. Mudar essa visão desde o ensino superior também é de uma importância grande para diminuir a desigualdade.
Ocupar esse lugar de produção de conhecimento do qual fomos retirados, já é um grande passo.
Além disso, a arquitetura como lugar de produção consegue diminuir desigualdades quando ela pensa na cadeia de produção toda. Desde o insumo até o local da construção, passando pela mão de obra e pela comunidade impactada.
A construção impacta diretamente a qualidade de vida e a forma que a gente vive em sociedade.
E como levar essa discussão para as cidades, tornando-as aliadas na luta contra a desigualdade social?
Gabriela de Matos – Quando falamos do edifício, já conseguimos ver, de uma forma superficial, qual a relação com a cidade.
É possível analisar quem vai morar no topo, quem entra no elevador de serviço, quem vai morar nas partes mais baixas e quem vai apenas trabalhar.
Mas a cidade dá o panorama gigante para isso. As cidades brasileiras são construídas para repetir essa visão de Casa Grande e Senzala. Em São Paulo, por exemplo, é possível ver isso de maneira muito clara.
É possível ver quais são os bairros que recebem esforços políticos e de infraestrutura e quais são os que não recebem.
Seria preciso um esforço coletivo para mudar essa estrutura. Diminuir as desigualdades deveria ser o foco do planejamento urbano de longo prazo. Fazer com que todos acessem as mesmas estruturas e oportunidades.
Nesse sentido, como seria uma cidade afrofuturista no Brasil? Seria tipo uma Wakanda, do filme Pantera Negra?
Gabriela de Matos – A ideia afrofuturista de Wakanda, como no filme Pantera Negra, é muito possível na África. O contexto é diferente do nosso.
Como vejo essa cidade afrofuturista? Entendo uma cidade onde a periferia tem igualdade de acesso, infraestrutura e qualidade de vida aos dos bairros mais ricos.
Fico imaginando as periferias que cheguem no caminho de apropriação do seu conhecimento, da sua força e potencial… e esses núcleos surgindo na cidade.
Não consigo imaginar a cidade inteira, mas consigo ver esses núcleos que, com poder, conseguiriam engolir a “outra” cidade facilmente. Porque as periferias produzem atualmente nas piores condições possíveis de existência.
Você imagina esse lugar tendo qualidade de vida? As pessoas dali tendo muita expectativa de vida? Eles iam engolir esse núcleo [das cidades].
Em 2018 você encabeçou a criação do Projeto Arquitetas Negras, que atualmente conta com uma lista de mais de 700 profissionais negras brasileiras. O que te motivou a fazer esse projeto? Quais impactos você vê hoje em dia?
Gabriela de Matos – No momento que criei o Arquitetas Negras eu já tinha 8 anos de graduação e estava trabalhando desde então. Eu tinha uma visão do mercado, entendia o sistema e consegui rebater com a questão racial.
O projeto acontece nesse lugar de mapear as arquitetas negras, entender o que elas estavam fazendo e como estavam experimentando o mercado.
A partir daí, comecei a trazer relações para produzir o conhecimento acadêmico em conjunto. Porque é preciso entender também que o fato de sermos arquitetas negras não faz com que a gente crie projetos a partir dessa perspectiva. Até porque, o mercado delimita muito a produção da arquitetura com um posicionamento mais claro. E criar essa rede de arquitetas e de produção acadêmica ajudou a atravessar esse caminho.
Com o tempo, o projeto se desdobrou para algo parecido como uma agência onde a gente indica as arquitetas negras do Brasil inteiro. E a rede é importante, ela precisa estar em todos lugares, precisa ser um pacto coletivo. Uma pessoa só não dá conta de mudar nada. E principalmente quando falamos de mudar uma estrutura, a gente precisa movimentar a todos.
Recebi uma mensagem muito interessante de um tio que, dois anos atrás, comprou o livro [do projeto] Arquitetas Negras para a sobrinha que gostava de desenhar. E, no final do ano passado, ele me mandou um print da lista dela aprovada em arquitetura na Unifesp.
O livro ajudou ela a escolher o curso. Ela se sentiu representada ali. Quando entrei na faculdade eu não tinha esse parâmetro, e isso já quer dizer que estamos criando uma noção para os jovens.
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