Em um momento em que cidades do mundo inteiro repensam seus limites, cresce a consciência de que o futuro urbano talvez não esteja em construir sempre mais, mas em transformar – com inteligência e cuidado – o que já existe. Nesse contexto, o reuso de edificações vem ganhando centralidade como estratégia capaz de conciliar preservação, sustentabilidade e novas dinâmicas urbanas. É justamente nesse ponto de inflexão, entre passado e possibilidade, que se concentra a prática da arquiteta Marina Canhadas, mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e responsável pelo escritório [entre escalas], em São Paulo/SP.
Marina consolidou uma abordagem que parte da atenção ao contexto, às camadas materiais e à história das edificações, especialmente em projetos que trabalham com preexistências, eixo que se tornou uma das principais frentes do seu escritório. Sua trajetória reúne experiências no Brasil e no exterior: viveu dois anos na Cidade do México, onde colaborou em diferentes escritórios; realizou intercâmbio na TU/e, na Holanda; e, no Brasil, atua há quase uma década como docente em instituições como FAU, Mackenzie e Escola da Cidade.
Esse percurso também se reflete em trabalhos premiados e reconhecidos, como a Casa Saracura (selecionada para o Prêmio AkzoNobel no Instituto Tomie Ohtake), o mobiliário urbano desenvolvido para o Instituto Pólis (premiado pelo IAB), e o projeto Subsolanus, vencedor do concurso internacional “Geometrías Invisibles”, em parceria com o Vão Arquitetura.
Nesta entrevista, Marina aprofunda as ideias que norteiam sua prática – da relação com o tempo às “poéticas possíveis” – e discute por que reabilitar o que já temos pode ser um dos caminhos mais potentes para imaginar cidades mais sensíveis, inteligentes e habitáveis.
Como começou o seu interesse por trabalhar com o reuso de edificações, e não com construções do zero?
Marina Canhadas: A partir de uma primeira encomenda entre 2014-2015, que foi a renovação de um sobrado existente no Bexiga, a Casa da Rua Rocha. Entendo cada projeto como uma nova oportunidade e cada projeto é específico. Arquitetura é a principal frente do escritório, e as intervenções/recuperações de sobrados antigos acabaram sendo, até o momento, a principal frente de trabalho.
A partir dos registros das obras finalizadas e publicadas, os trabalhos começaram a circular e novos clientes foram aparecendo. O início do projeto sempre começa com a visita ao local, entendendo a relação com os vizinhos, seu entorno, se existe uma árvore na frente do imóvel etc. Sempre faço registros fotográficos das situações existentes. No caso da Casa Saracura, fiz também uma pesquisa sobre o bairro do Bexiga, entendendo a sua história, geografia, topografia e a presença de equipamentos culturais, além de caminhar e vivenciar o bairro para entender melhor as suas dinâmicas urbanas. Então, cada caso é um caso.
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O que te atrai em transformar o que já existe — em vez de demolir e recomeçar?

Marina Canhadas: É sempre um desafio trabalhar com preexistências. Revelar técnicas construtivas existentes e elementos arquitetônicos originais, remover rebocos, azulejos, forros, camadas de tinta… Estes gestos abrem possibilidades para a elaboração do projeto. Uma espécie de “arqueologia arquitetônica” do ponto de vista de sua dimensão material, mas não só isso. É sobre matéria e é também sobre o tempo. Sobre a memória. Parece-me fundamental, nestas intervenções, revelar o que já estava lá e que foi escondido ao longo dos anos e entender esses tempos, conectar passado e futuro. É fascinante ver a transformação destes espaços já construídos anteriormente. Por exemplo, ver a luz entrar, abrir novos vãos para a melhor entrada de luz e ventilação natural como premissa de projeto. Isso muda radicalmente a qualidade dos espaços, traz novo sentido às preexistências.
De onde vem o nome [entre escalas]? O que ele representa na sua maneira de pensar arquitetura?
Marina Canhadas: O início do [entre escalas] se deu em 2018, ao sentir necessidade de um espaço físico para trabalhar. Já desenvolvia alguns projetos independentes, como a Casa Rua Rocha – minha primeira aproximação com sobrados antigos. Durante os primeiros anos, também fazia colaborações com outros escritórios de arquitetura e participava de concursos. O nome [entre escalas] vem um pouco do que a Lina Bo Bardi falava: “do desenho da colher ao desenho da cidade”. Compreender as diferentes escalas em busca de poéticas possíveis. Trabalhar na escala do objeto e na escala da cidade.
Como o tempo — as marcas, as memórias e as mudanças — entra nos seus projetos de reuso de edificações?
Marina Canhadas: Primeiramente, entendendo quais são os elementos de valor arquitetônico interessantes de serem mantidos: escadas de madeira, estruturas de telhados, por exemplo. Alguma materialidade que merece ser preservada e que revela uma determinada época. As intervenções em sobrados existentes sempre buscam trazer luz natural através de novas aberturas, clarabóias ou simplesmente pela substituição de uma telha de barro por uma telha de vidro. Pequenos gestos que mudam tudo.
Reabilitar um espaço é também lidar com a história das pessoas que passaram por ele. Como você equilibra o novo e o antigo em seus projetos de reuso de edificações?
Marina Canhadas: Depende muito de caso a caso, mas principalmente mantendo as estruturas originais, revelando as técnicas construtivas existentes, incorporando novas demandas e materialidades. Organizando os espaços de uma outra maneira ou repensando seu uso, como na Padaria Mich Mich. Reutilizar materiais existentes acaba sendo também uma estratégia de projeto, tanto pela economia de recursos como de custo da obra. Então, já reaproveitamos portas metálicas, de madeira, bancadas.
Na Casa Saracura, a porta de madeira na entrada era a porta de acesso à cozinha, para o aproveitamento da porta existente; na Reforma da Casa na Vila Madalena, as portas metálicas que ficavam na lavanderia foram reposicionadas na sala de jantar para a conexão direta com o pátio (antes inexistente); e na Casa Apiacás, a porta e a janela de ferro foram invertidas para o melhor fluxo da casa entre o “pátio vermelho” e a varanda da frente. A estratégia é a de reaproveitar e reposicionar estes elementos para um melhor uso, transformando os espaços com o que já existia ali.
Que tipo de cidade você imagina quando escolhemos reaproveitar o que já temos, em vez de construir sempre mais?

Marina Canhadas: Lewis Mumford dizia que as nossas estruturas duram mais do que as nossas funções. Então, pensar em cidades que possam reaproveitar, reabilitar, repensar estruturas já existentes, com novos usos, com novas dinâmicas, respondendo às questões contemporâneas, sem necessariamente construir do zero, me parece um caminho possível para pensar o futuro das cidades. O Sesc Pompeia é um exemplo ótimo nesse sentido.
Você costuma falar em “poéticas possíveis”. O que essa expressão significa para você na prática?
Marina Canhadas: Melhoria na qualidade dos espaços, impactando diretamente na vida das pessoas. Le Corbusier diz em seu texto “Espaço Indizível” que “a chave da emoção estética é uma função espacial”. Então a intenção é, de certo modo, promover emoção através da construção/transformação dos espaços.