Reúso adaptativo é injeção de vitalidades social e econômica

Alinhada à sustentabilidade, adaptação de imóveis geram impactos positivos com efeito cascata sobre as cidades.

Por Marcus Lopes em 10 de abril de 2024 7 minutos de leitura

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Foto: Nelson Kon/Brasil Arquitetura

Edifícios históricos são fundamentais para a preservação das identidades culturais e patrimoniais dos povos que viveram ou ainda vivem em determinado lugar. Mas não apenas isso. Ao direcionar o olhar para o futuro, a preservação do patrimônio pode tornar a cidade mais equilibrada em relação a um dos temas mais importantes da atualidade: a sustentabilidade ambiental. 

A partir do conceito básico de que é melhor aproveitar e adaptar o que está pronto, em vez de demolir para construir tudo de novo no mesmo lugar, novas práticas urbanas, chamadas de reúso adaptativo de edificações, prometem revolucionar as cidades dos pontos de vista ambiental, social e econômico. De quebra, ajudam a preservar o planeta às futuras gerações. A prática se encaixa tanto a bens de preservação histórica, incluindo os tombados pelos órgãos de patrimônio históricos, como edifícios antigos que apenas estão desocupados ou mesmo subutilizados.

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Victoria Ordonez (Foto: Divulgação)

“O reúso adaptativo de edifícios é uma forma de regeneração urbana sustentável, pois prolonga a vida útil do edifício, evita resíduos de demolição e incentiva a reutilização da energia incorporada”, explica Victoria Ordonez, arquiteta e mestre em patrimônio arquitetônico e cultural. A conservação do que já está em pé há muito tempo, destaca a arquiteta, provoca economia de recursos e evita acúmulo de resíduos de construções, uma das grandes preocupações ambientais da vida urbana moderna. 

Victoria destaca outros ganhos para a sustentabilidade. “A pressão sobre as áreas verdes é aliviada, uma vez que a ênfase está no uso eficiente do espaço já existente. Essa abordagem não apenas evita a expansão desordenada, mas minimiza a necessidade de expandir a infraestrutura urbana, contribuindo para a utilização mais equilibrada dos recursos naturais disponíveis no planeta”, explica. 

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Relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que o aumento global da construção civil elevou as emissões de CO2 para uma alta histórica de carbono na atmosfera. Segundo a entidade, apesar do aumento em 16% no investimento em eficiência energética nos últimos anos, o consumo de energia e as emissões de CO2 oriundas do setor de construção civil se recuperaram da pandemia de Covid-19 e atingiram recordes históricos. Em 2021, conforme a ONU, essas emissões foram 5% maiores do que no ano anterior, e 2% a mais do que o pico pré-pandemia, em 2019. 

O reúso adaptativo pode contribuir para a reversão desse quadro e aumentar a sustentabilidade nos canteiros de obras. “Ao diminuir a necessidade de iniciar construções do zero, haverá redução notável nas emissões provenientes de processos industriais e transporte de materiais. Isso resulta em significativa mitigação das emissões”, diz Victoria. 

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Marcos José Carrilho (Foto: Divulgação)

A opinião é compartilhada pelo arquiteto Marcos José Carrilho, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo ele, o tema do reúso e adaptação de prédios ganha relevância cada vez maior nos debates urbanísticos, nas empresas, governos e universidades. “O aproveitamento de edificações nos locais em que elas já existem evita a expansão da cidade e a necessidade de novas frentes de urbanização. É algo mais racional e com efeitos muito positivos ao meio ambiente”, diz Carrilho.

Uma das dúvidas relativas a novas ocupações e usos para edificações antigas é a necessária adaptação do imóvel aos padrões modernos de segurança e conforto. Para isso, é necessário um projeto cuidadoso para conciliar a preservação dos elementos arquitetônicos com as exigências da vida moderna, como as infraestruturas hidráulica e elétrica, além do conforto térmico e segurança do imóvel, entre outros fatores. 

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A adaptação da estrutura é possível e, mais do que isso, essencial para que o projeto de reúso seja bem-sucedido, dizem os arquitetos. “Uma abordagem eficaz pode incluir a incorporação sutil de tecnologias modernas, garantindo a integração desses elementos de forma harmoniosa ao contexto histórico do imóvel”, explica Victoria. Ela ressalta que a preservação da estética e da autenticidade arquitetônica é fundamental, evitando contrastes bruscos entre características antigas e elementos modernos. 

A adaptação é importante para a própria segurança da edificação e dos moradores ou usuários. “A atualização dos sistemas elétricos e de encanamento é essencial para atender às normas contemporâneas de segurança e eficiência. Essas melhorias são cruciais para adaptar o imóvel às exigências práticas da vida moderna, sem comprometer a integridade do patrimônio arquitetônico”, acrescenta.

Centros históricos

Os benefícios vão além da porta de entrada do imóvel, dizem os especialistas. O esvaziamento e a decadência dos centros históricos são problemas crônicos nas grandes e até nas médias cidades brasileiras. Como tudo na cidade começou ali, geralmente é a área que concentra o maior número de edificações históricas e prédios comuns, muitas vezes abandonados. 

Apenas no Centro de São Paulo – que sofre há décadas com o esvaziamento econômico e problemas crônicos como a ocupação da região da Cracolândia – existem mais de 33 mil imóveis vazios. A adaptação desses imóveis para novos usos – residencial, comercial e de serviços – poderia requalificar toda a região.

“Há consenso de que é necessário aumentar o uso residencial para aumentar a vitalidade da região central. Essa vitalidade naturalmente gera mais segurança”, diz Carrilho, lembrando que, após o horário comercial ou mesmo nos finais de semana, as ruas da região ficam vazias e aumentam a sensação de insegurança e abandono. 

Além disso, o aumento da população fixa desencadeia um ciclo virtuoso para a instalação de novos serviços para atender os moradores, como supermercados, pequenos comércios, serviços, bares e restaurantes. É um vai e vem diário e frenético que contribui para manter as ruas mais movimentadas, alegres, dinâmicas, heterogêneas e seguras, em qualquer horário do dia ou da noite.

“A transformação dessas localidades outrora decadentes cria nova dinâmica e atratividade, incentivando a habitação, o turismo e atividades culturais. O resultado é uma renovação abrangente que reabilita não apenas os edifícios, mas também a vitalidade social e econômica dessas áreas”, diz Victoria.

Os programas públicos e privados de incentivo ao uso misto e atração de novos moradores para os centros urbanos, destaca Carrilho, devem priorizar as camadas de menor renda, mas não apenas elas. As pessoas e famílias de classes média e alta também devem ser estimuladas a se mudarem para o Centro. Além de geralmente concentrar a melhor infraestrutura urbana instalada, possui um leque enorme de opções de lazer, trabalho e serviços destinados às mais diversas camadas da população, inclusive os idosos.

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“O ideal é a composição de renda, para não serem criados guetos de ricos ou de pobres. Distintas classes sociais convivendo no mesmo espaço urbano é algo muito saudável”, explica Carrilho, para quem a diversidade serve como estímulo ao mercado imobiliário para investir na região. “O poder público não é capaz de, sozinho, recuperar uma área inteira como o Centro. É necessário atrair o setor privado, mostrar que investir naquela região é algo que pode ser muito interessante para ele”, conclui o professor.

Na prática

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Museu da Língua Portuguesa

Em diversas cidades brasileiras, antigos edifícios relegados ao abandono ou à subutilização durante décadas ganharam vida nova ao serem adaptados para o uso residencial, cultural ou comercial. Um dos mais emblemáticos é o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Inaugurado em 2006, o equipamento revitalizou o prédio da Estação da Luz e tornou-se uma das principais referências culturais da cidade e do País. Na mesma linha, a arquiteta Victoria Ordonez também destaca o Conjunto Cultural da Caixa, em Recife; o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro e São Paulo; e o Sesc 24 de Maio, antiga lojas
Mesbla, no Centro da capital paulista. “São exemplos bem significativos, pois mostram a importância de
preservar os edifícios históricos, geralmente localizados em regiões centrais, bem como a potência deles para abrigar os usos contemporâneos e continuar perpetuando a história da cidade”, explica Victoria.

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Foto: Reprodução/Hotel Glória

No caso de transformação de edificações para uso residencial, dois projetos se destacam, ambos no Rio de Janeiro. Um deles é o antigo Hotel Gloria, que está sendo transformado em um prédio residencial de luxo, com mais da metade dos novos apartamentos já comercializados. O outro é o antigo edifício do jornal A Noite, que sofreu com o abandono durante muitos anos, e também será adaptado e transformado para uso residencial.

O mesmo caminho deverá ser seguido no prédio da antiga Telesp, no Centro de São Paulo, que deverá receber um projeto de retrofit para transformação do antigo espaço comercial em novos apartamentos e uma galeria abeta de lojas e restaurantes. O projeto já foi aprovado pela Prefeitura no ano passado.

Reúso adaptativo, injeção de vitalidade

Para Victoria Ordonez, a injeção de vitalidade proporcionada pelo reúso adaptativo resulta em diversos benefícios. Em primeiro lugar, promove o desenvolvimento econômico local, criando oportunidades de negócios e empregos. “Estabelecimentos comerciais revitalizados podem atrair investimentos, gerar receitas fiscais e fornecer espaços para empreendimentos locais, fortalecendo a base econômica da comunidade”, diz. 

Há também preservação da herança histórica associada a esses locais. Ao oferecer novos usos a edifícios e estruturas carregadas de significados culturais e históricos, a identidade local é preservada. Em muitos casos, até mesmo reforçada. “Isso é particularmente crucial em áreas urbanas, onde a História, muitas vezes, está entrelaçada com a arquitetura e a configuração urbana”, explica.

Nem tudo é simples, porém. A viabilidade de projetos ainda esbarra em desafios como a burocracia e os gastos. “A questão financeira é um fator significativo, pois o reúso adaptativo, muitas vezes, implica custos iniciais mais elevados em comparação à demolição e construção de novos edifícios. Convencer investidores e desenvolvedores sobre os benefícios a longo prazo pode ser desafiador”, pondera Victoria. Além disso, segundo ela, a resistência à mudança tanto por parte da comunidade quanto dos proprietários pode surgir por causa da nostalgia ou preocupações sobre a viabilidade econômica das adaptações propostas. “Superar essas resistências exige uma comunicação eficaz e esclarecimento sobre os benefícios do reúso adaptativo para a comunidade e o ambiente urbano”, ressalta Victoria. Experiências em países onde o reúso está mais avançado, como Países Baixos e Reino Unido, podem contribuir para incentivar e quebrar resistências. “Essas regiões têm uma rica tradição de preservação do patrimônio e são conhecidas por abordagens progressistas ao reúso adaptativo. Experiências bem sucedidas nesses países podem fornecer insights valiosos para cidades brasileiras que buscam desenvolver práticas eficazes de reúso”, sugere Victoria.

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