Superstições e tabus têm silenciado um problema ambiental preocupante: a contaminação do solo e das águas subterrâneas por necrochorume.
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Redação em 1 de novembro de 2024 6minutos de leitura
Imagem gerada por Inteligência Artificial
Ignorados por causa de superstições e tabus religiosos, os cemitérios escondem um problema ambiental silencioso e potencialmente perigoso: o necrochorume. Esse líquido tóxico, resultante da decomposição de corpos, infiltra-se no solo e pode contaminar lençóis freáticos, colocando em risco a saúde pública e o meio ambiente.
Em um relatório de 1998, a Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou-se por ser uma das primeiras entidades a emitir um alerta global sobre os riscos que os cemitérios representam para o meio ambiente e a saúde pública. A pesquisa, conduzida em vários países europeus, revelou a presença de focos de bactérias e poluentes originários dos túmulos, os quais podem impactar gravemente a população que vive nas proximidades dessas necrópoles.
No Brasil, o alerta não era novidade. Desde a década de 1970, cientistas brasileiros têm investigado os impactos negativos dessas áreas, trazendo à tona uma realidade preocupante. Diversos estudos, como o realizado pelo engenheiro ambiental Leonardo Augusto de Carvalho, da Universidade Federal de Juiz de Fora, apresentaram evidências de que pessoas que residem ou trabalham nas proximidades de cemitérios podem ser expostas a doenças causadas por bactérias e vírus presentes na água contaminada pelo necrochorume. O líquido gerado pela decomposição dos corpos infiltra-se no solo e pode atingir os lençóis freáticos, poluindo fontes de água e, assim, colocando em risco a saúde de comunidades inteiras.
A situação se agrava em regiões onde a fiscalização ambiental é precária ou inexistente, permitindo que cemitérios operem sem o devido controle sobre o manejo de resíduos humanos. O crescimento desordenado das cidades brasileiras, aliado à falta de planejamento urbano que contemple a gestão sustentável dessas áreas, contribui para que o problema permaneça fora do radar das autoridades e da sociedade.
O que é necrochorume, de fato?
De coloração escura e odor forte, o necrochorume é composto por uma mistura de água, sais minerais, substâncias orgânicas, bactérias e diversos patógenos, na proporção de 60% de água, 30% de sais minerais e 10% de substâncias orgânicas (putrecina e cadaverina), altamente tóxicas. O principal problema associado a esse fluido é sua capacidade de infiltrar-se no solo e alcançar lençóis freáticos, podendo contaminar fontes de água potável e causando uma série de problemas ambientais e de saúde.
Neste caso, existe o risco de que as águas subterrâneas, contaminadas pelo necrochorume, possam se espalhar além dos limites do cemitério e serem acessadas por meio de poços pelas comunidades vizinhas. A ingestão de água contaminada por este líquido pode levar ao surgimento de doenças graves, incluindo febre tifoide, hepatite A e tuberculose, entre outras.
Impacto no meio ambiente: a contaminação de lençóis freáticos
Os impactos ambientais provocados por cemitérios estão diretamente ligados a fatores como a profundidade das covas, o tipo de solo, a drenagem e a proximidade de áreas urbanas. Esses fatores determinam o grau e o tipo de poluição que pode ocorrer, divididos em Impactos Físicos Primários e Secundários.
Em uma entrevista à revista TAE, que foca em tratamento de água e efluentes, Fábio Campos, professor de gestão ambiental da USP, explica que os Impactos Físicos Primários são marcados pela contaminação de aquíferos subterrâneos.
Há duas formas principais pelas quais os cemitérios podem contaminar os aquíferos. A primeira acontece quando a chuva se infiltra pelas sepulturas e leva o necrochorume para o subsolo. A segunda ocorre quando o nível dos aquíferos sobe e acaba inundando as sepulturas. Depois de percorrem os cemitérios, essas águas geralmente são direcionadas para a rede de drenagem urbana e canalizadas para rios e lagos, levando consigo contaminantes originados dentro do cemitério.
Já os Impactos Secundários surgem dos maus odores gerados pela decomposição dos corpos, que podem ser intensificados por problemas nos sepultamentos e acarretar mal-estar e até mesmo sintomas, como náuseas e dores de cabeça, contribuindo para um impacto negativo na qualidade de vida local.
Campos explica que o tipo de solo também influencia muito nesses impactos. Solos arenosos não conseguem reter a água e os contaminantes, enquanto os solos argilosos são melhores nessa tarefa, o que afeta diretamente como os contaminantes se movimentam no subsolo.
Vale ressaltar que a profundidade do lençol freático é importante para evitar a contaminação das águas subterrâneas pelo necrochorume. Em situações onde o lençol freático está muito próximo da superfície, o necrochorume pode alcançar os aquíferos praticamente inalterado, resultando em contaminação e poluição por seus componentes químicos e biológicos.
Substâncias tóxicas e necrochorume: doenças para os vivos
O reconhecimento dos cemitérios como fontes potenciais de contaminação ambiental e humana demorou a ser estabelecido. Muitos cemitérios foram construídos sem o devido cuidado, posicionados perigosamente perto dos lençóis freáticos, aumentando os riscos ambientais e para a comunidade local.
Embora a questão tenha sido ignorada por algum tempo, especialistas vêm alertando sobre esses riscos há décadas. Em 1978, o Dr. Laurens Bouwer, cientista sênior no Climate Service Center Germany (GERICS), documentou incidentes em que líquidos resultantes da decomposição contaminaram as águas subterrâneas. Ele destacou um surto de febre tifoide entre moradores próximos a Berlim, de 1863 a 1867. Similarmente, em Paris, durante os meses quentes, foi observado que a água subterrânea, com um odor forte e sabor adocicado, extraída de poços próximos a necrópoles, estava contaminada.
Em um período mais recente, no Brasil, um levantamento conduzido pelos pesquisadores Marcelo Stipp, Marcela Silva e Mônica Bertachi, no cemitério São Pedro, em Londrina/PR, observou que a contaminação dos cemitérios pode chegar a um raio de 400 metros e acarretar doenças e distúrbios como vômitos, gastroenterite, diarreias e cólicas. Esta contaminação acomete a saúde de pessoas que consomem águas oriundas de poços artesianos ou cisternas próximas ao cemitério.
Em outro estudo realizado em cemitérios de Curitiba e São José dos Pinhais, também no Paraná, foi constatada a presença de metais, como alumínio, chumbo, ferro, manganês, cálcio e magnésio em níveis superiores aos permitidos pela legislação. A alta concentração de alumínio pode provocar surdez, tremores, perda de memória, dores musculares e danos ao sistema nervoso central. O excesso de ferro está associado à hemocromatose, enquanto o manganês pode causar problemas respiratórios e efeitos neurotóxicos. O chumbo, considerado um metal bioacumulável, afeta diretamente o sistema nervoso, rins e medula óssea.
Em níveis elevados, o cálcio pode causar irritabilidade, fraqueza muscular, depressão, anorexia e formação de cálculos renais. O excesso de magnésio pode levar a sede crônica, náuseas, boca seca e hipotensão. Além dos metais, também foram identificados micro-organismos, como Proteus morganii, Serratia marcescens e Salmonella sp, principais responsáveis por doenças como pneumonia, febre tifoide e septicemia.
A necessidade de estudos preventivos
Em 2018, o químico e doutor em Ciências Ambientais, Francisco Carlos da Silva, realizou um estudo no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Piedade/SP, focando na avaliação de necrochorume e metais potencialmente tóxicos no solo. As análises químicas realizadas a partir dos dados geofísicos confirmaram um aumento na concentração de metais pesados, especialmente nas camadas de solo situadas entre 1,5 a 3 metros de profundidade — diretamente abaixo das sepulturas.
Segundo Silva, esta linha de pesquisa não foca apenas na contaminação dos aquíferos freáticos, mas também na possibilidade de que produtos da decomposição possam afetar, direta ou indiretamente, a saúde humana. Um dos riscos envolve a absorção desses metais por vegetais irrigados com água contaminada, que quando consumidos, podem transferir esses elementos tóxicos para as pessoas.
Além disso, o pesquisador destacou em entrevista ao portal da Universidade Estadual Paulista (Unesp) a importância de conduzir estudos geotécnicos, geofísicos e hidrogeológicos antes da implantação de cemitérios. Esses estudos são essenciais para identificar e mitigar os potenciais danos ambientais causados pela contaminação de metais e necrochorume no solo, prevenindo, assim, problemas de saúde pública e ambientais a longo prazo.
Medidas para prevenir contaminação do solo e das águas subterrâneas
Considerando os riscos de contaminação associados à implantação e operação de cemitérios, alguns países adotaram medidas técnicas e científicas para mitigar os problemas dessas instalações, visando à proteção efetiva do meio ambiente. Na Inglaterra, França e Holanda, legislações que regulamentam as distâncias entre cemitérios e poços de abastecimento de água potável estão em vigor desde a década de 1950.
No Brasil, a regulamentação ambiental de cemitérios é rigorosamente controlada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que exige um licenciamento ambiental específico para a instalação desses locais. A legislação enfatiza especialmente a proteção das águas subterrâneas para evitar a contaminação por infiltrantes como o necrochorume. Antes de qualquer novo cemitério ser estabelecido, é mandatória uma análise detalhada do terreno, assegurando que a localização selecionada minimize os riscos de contaminação ambiental.
Complementando a regulamentação federal, órgãos estaduais, como a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), também dispõem de diretrizes específicas para o licenciamento dessas áreas. Para mitigar os riscos ambientais, foram desenvolvidos métodos eficazes de tratamento do necrochorume, incluindo o uso de filtros biológicos, pastilhas e mantas absorventes.
Essas tecnologias só podem ser implementadas em cemitérios que possuam uma infraestrutura ecologicamente correta e que estejam em conformidade com as normativas do Conama e outras legislações estaduais pertinentes.
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