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“Cidades são complexas e devem ser pensadas por profissionais e cidadãos”, diz Verena Andreatta
Com uma trajetória que une vivência e academia, Verena Andreatta defende um urbanismo que promove o diálogo entre profissionais e cidadãos para "dignificar a vida urbana".
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Nathalia Ribeiro em 17 de fevereiro de 2025 9minutos de leitura
Verena Andreatta (Foto: Divulgação)
Arquiteta e urbanista, Verena Andreatta é, acima de tudo, observadora da cidade e de seus movimentos. Sua história profissional e pessoal se entrelaçam, refletindo uma visão de urbanismo que nasce não apenas dos livros e da teoria, mas da experiência vivida nas ruas de diferentes cidades.
Com especializações que incluem Planejamento Urbano e Regional, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Housing, Planning and Building, pelo Institute for Housing Studies, nos Estados Unidos, Verena sempre buscou um entendimento mais profundo do que é uma cidade. Seu doutorado em Urbanismo e Ordenação do Território pela Universitat Politècnica de Catalunya, em Barcelona, ampliou ainda mais sua capacidade de analisar e projetar espaços urbanos de forma crítica e integrada.
Mas a sua experiência profissional nas Prefeituras do Rio de Janeiro e Niterói foi fundamental para a compreensão das ruas como um reflexo das relações sociais e culturais nas cidades. A atuação como Secretária de Urbanismo e Mobilidade de Niterói lhe deu a oportunidade de trabalhar diretamente no planejamento de espaços públicos, reconhecendo o quanto as ruas podem ser poderosos elementos de transformação social. Em entrevista ao Habitability, ela compartilha essa visão e fala sobre a importância de não apenas otimizar a infraestrutura urbana, mas criar ambientes que, além de funcionais, sejam capazes de promover a convivência e a identidade dos cidadãos.
Em algumas palestras, você afirma que tem convicção de que cidades transformadas podem transformar as pessoas. Como essa ideia se consolidou ao longo da sua carreira?
Verena Andreatta: Hoje vejo que essa ideia foi se consolidando a partir da minha própria vivência, por eu ter morado em dezessete ruas diferentes, em diferentes cidades. Morei primeiro em cidades pequenas, no interior da Bahia. Lembro-me que, em uma das casas, nos debruçávamos sobre o muro e ficávamos olhando o movimento da rua. De dentro do jardim da frente, eu vislumbrava o “espetáculo do mundo” do lado de fora. Aventurar-me fora desse limite exigiu não só dominar os espaços e os percursos, como também superar medos e perigos.
Ao chegar no Rio de Janeiro, já adolescente, as ruas me pareceram grandes, variadas e interessantes. O que desde criança eu havia aprendido intuitivamente exigiu, diante da escala ampliada de uma cidade como o Rio, novas superações e adaptações. Por outro lado, a experiência profissional nas Prefeituras do Rio e de Niterói me permitiu compreender as ruas como uma síntese do mundo. Desde então, trabalhar sobre ruas e avenidas e entender o significado do espaço público para os habitantes das cidades têm sido um aprendizado constante.
Seu doutorado em Barcelona permitiu o estudo de diversas cidades do mundo. Quais aprendizados mais relevantes dessa experiência influenciaram você ?
Verena Andreatta: Barcelona é o paradigma da boa cidade. Estudá-la e conhecê-la foi algo que colaborou para que eu entendesse o que significa uma cidade equilibrada urbanística e socialmente. O Ensanche de Cerdá, onde vivo atualmente, tem sido objeto de inúmeros estudos acadêmicos e laboratório de experiências municipais, como as recentes Superillas (pedestrialização e paisagismo de ruas).
O que lhe chamou atenção na dinâmica urbana de Barcelona?
Verena Andreatta: A estrutura singular do Ensanche, apoiada em uma malha urbana formada por uma quadrícula ortogonal, que são ruas de 20 metros de largura, com generosas calçadas de 5 metros, impressiona pelo rigor na sua implantação. A alta densidade residencial e a mescla de diversos usos nas mesmas edificações são dois atributos que geram vitalidades, comodidades e dinâmicas próprias na cidade. Talvez seja essa a principal lição a ser aprendida para formar um catálogo de boas práticas urbanas.
Quase todos os edifícios residenciais, construídos com altura uniforme, entre 7 e 8 pavimentos, têm fachadas ativas, em que os térreos possuem usos públicos ou comerciais, bibliotecas, teatros, cinemas, museus, galerias de arte, oficinas mecânicas, mercados e supermercados. Qualidade urbana socialmente justa, na medida em que as quadrículas conferem um aspecto homogêneo e mais equânime à cidade. Outra característica evidente na dinâmica urbana de Barcelona é a distribuição equitativa dos serviços públicos e atividades culturais, cujos acessos são realizados preferencialmente a pé e em tempo razoável.
Então, Barcelona pode ser considerada uma cidade com mobilidade ativa?
Verena Andreatta: Sim. A mobilidade ativa é induzida por uma rede cicloviária em processo de expansão pela implantação facilitada, seja pela topografia suave, seja pela diminuição dos espaços destinados aos automóveis. Já no sistema de transportes, a malha ortogonal favorece fluxos equilibrados, graças à polivalência de usos e ao policentrismo organizado. A cidade abandonou a lógica de que tudo passa pelo centro, com a implantação das Rondas, que formam o anel viário, uma das principais conquistas da cidade. A integração social vem sendo estimulada pela coexistência de diversos segmentos da sociedade, embora a pressão turística esteja provocando gentrificação e desconforto para os cidadãos, seja pelo encarecimento do custo da moradia, seja pela falta de oferta pública de projetos residenciais.
Como foi sua experiência ao trabalhar tanto no Rio de Janeiro quanto em Niterói? Quais diferenças e semelhanças percebe na dinâmica dessas cidades?
Verena Andreatta: A minha experiência profissional nas duas cidades corroborou algumas das minhas teses. A primeira delas é a de que a gestão das cidades deve combinar o planejamento estratégico com o planejamento urbano tradicional, pois desse modo se elevam as possibilidades de desenvolvimento social e econômico da cidade e de seus cidadãos. Enquanto o primeiro alavanca parcerias público-privadas, visando ao impulso de projetos com visão de futuro e metas alcançáveis a curto e médio prazos, o segundo envolve diretrizes de desenvolvimento urbano mediante participação popular e prazos indefinidos.
Essa tese, porém, não é consensual e tem se mostrado polêmica. No entanto, asseguro que o estratégico não substitui e nem deve substituir o tradicional, como em Niterói, onde tanto o Plano Estratégico Niterói que queremos 2013-2030, quanto o Plano Diretor, vêm sendo adotados como instrumentos de ação urbana, assim como no Rio de Janeiro, onde o Plano Estratégico Rio sempre Rio foi impulsionado a partir de 1993, mas depois que se tornou peça obrigatória, pela lei de 2008, perdeu, a meu ver, a eficácia do componente estratégico.
Você falou em “teses”, quais seriam as outras?
Verena Andreatta: A segunda tese é a de que a história e a memória das cidades devem ser entendidas segundo seus planos de criação e sua evolução urbana. Os centros devem receber atenção prioritária. Com o tempo, a habitação, que antes ficava no centro, foi sendo empurrada para as periferias, esvaziando essas áreas e tirando delas sua função urbana essencial. Tanto Niterói quanto o Rio de Janeiro vêm realizando projetos e leis para reverter esta situação, o que considero extremamente importante.
A terceira trata do problema das moradias das classes menos favorecidas em áreas pouco adequadas, cuja única solução parece ser a urbanização dos assentamentos espontâneos, como as favelas, mediante a construção de infraestruturas de bairros formais, adaptadas, quando necessário. O programa Favela Bairro, do Rio de Janeiro, continua desde a sua criação, em 1994, e Niterói acaba de lançar o programa Vida Nova no Morro, seguindo os critérios e as boas práticas vigentes e experimentadas por muitas cidades brasileiras.
Há, ainda, uma quarta tese?
Verena Andreatta: A quarta tese se refere às questões colocadas pelos desafios ambientais, que tanto o Rio de Janeiro, quanto Niterói, como cidades costeiras pertencentes ao mesmo ecossistema, têm de enfrentar. Neste âmbito, penso que a colaboração entre as duas deva ser ampliada, pois os ecossistemas naturais e urbanos estão interconectados e exigem soluções inovadoras, tais como infraestruturas de drenagem, sistemas de mobilidade urbana e, sobretudo, grandes parques, como o Parque Orla de Piratininga Alfredo Sirkis, em Niterói, e o Parque Madureira, na zona Norte do Rio de Janeiro.
A revitalização da Orla Marítima do Rio, da qual você participou, mudou a relação da cidade com suas praias e o espaço público. Como foi o processo de implementação desse projeto?
Verena Andreatta: Desde o início, o processo de construção da orla marítima do Rio tem transformado a relação da cidade e da sociedade com suas praias e espaços públicos. O Projeto Rio Orla foi pensado para a recuperação da principal fachada da cidade, do Leme ao Pontal, ao longo de seus 30 quilômetros de extensão. Criou-se a primeira ciclovia à beira-mar e padronizamos o modelo de quiosques, ordenando-os ao longo da orla. A implantação contou com projeto paisagístico, de mobiliário urbano e de iluminação pública.
Em pleno verão, as obras acabaram bloqueando algumas áreas da praia, e os banhistas e frequentadores se tornaram quase “fiscais de obras”. Já no trecho da Barra da Tijuca, o desafio recaiu sobre uma urbanização completa da avenida litorânea, que não contava com infraestrutura urbana.
A criação das ciclovias no Rio marcou uma nova fase na mobilidade urbana da cidade. Como enxerga o impacto desse projeto hoje? Você acredita que a cultura da mobilidade ativa está, de fato, consolidada ou ainda enfrenta desafios?
Verena Andreatta: Bem, eu não diria que a criação das ciclovias no Rio de Janeiro marcou uma nova fase na mobilidade urbana da cidade. É evidente que a malha cicloviária, iniciada com a ciclovia da orla, embora tenha se estendido e hoje alcance mais de 400 quilômetros, ainda não conforma uma rede estruturada, mesmo que muito se tenha realizado para incentivar o uso da bicicleta, como o uso compartilhado e os espaços para bicicletários.
Niterói, por outro lado, se destaca na forma como planeja e implementa as suas políticas cicloviárias. O caráter participativo, amplo e interdisciplinar das ações e projetos permite atender, paralelamente, as necessidades relacionadas à segurança na circulação e estacionamento de bicicletas, a disponibilidade de bicicletas públicas e o estímulo à cultura da bicicleta na cidade. Niterói conta com 80 quilômetros de ciclovias, segundo especialistas, as mais movimentadas do país, e o sistema de bicicletas compartilhadas mais utilizado.
O centro de Niterói passou por um processo de esvaziamento populacional e econômico. Quais foram os principais desafios enfrentados para reverter essa situação?
Verena Andreatta: Reabilitar uma área degradada não se resume apenas a intervenções com obras de requalificação urbana, mas exige também um esforço coletivo para reverter as tendências negativas que levaram àquela situação. Nesse contexto, além dos desafios inerentes ao projeto urbanístico, foi necessário enfrentar grandes obstáculos, como a recuperação de espaços públicos ocupados irregularmente, a negociação do parcelamento compulsório de grandes vazios urbanos com os proprietários e, agora, a criação de mecanismos de crédito subsidiado para estimular a construção de moradias no Centro.
Atualmente, cerca de 3 mil unidades habitacionais estão em construção nos terrenos antes utilizados como estacionamentos. No entanto, para acelerar a ocupação residencial no Centro, a prefeitura de Niterói está criando um fundo destinado a subsidiar os juros para a construção de moradias e a financiar um programa de aluguel para universitários.
No seu TEDx de 2014, você comentou sobre o projeto do centro de Niterói que previa a construção de uma estação intermodal e a integração com o Caminho Niemeyer. Agora, em dezembro de 2023 houve a entrega de obras da integração do Caminho Niemeyer. Na sua visão, como essa integração pode beneficiar a mobilidade e a economia da cidade?
Verena Andreatta: A integração do Caminho Niemeyer talvez seja a entrega mais emblemática do projeto de Requalificação Urbana da Área Central de Niterói. Era um vazio urbano de mais de 80 mil metros quadrados, antes utilizado como estacionamento com 1,4 mil vagas para veículos de outros municípios, que recebia diariamente um grande fluxo de automóveis. Além disso, esse espaço contribuía significativamente para a sensação de degradação e insegurança tanto no Centro, quanto no próprio Caminho Niemeyer.
Com o parcelamento compulsório e o esforço de urbanização dos proprietários, que implementaram um projeto desenvolvido pelo escritório Burle Marx, surgiu uma nova área de expansão no coração da cidade. Hoje, essa área se tornou o principal vetor de desenvolvimentos econômico e social de Niterói. A integração do Caminho Niemeyer ao Centro tradicional promete ampliar esses impactos positivos, beneficiando toda a região e facilitando o acesso de moradores e turistas ao local. Tudo isso de forma mais sustentável, privilegiando deslocamentos a pé ou de bicicleta. Além dos impactos urbanístico e ambiental, o encerramento das milhares de vagas de estacionamento para automóveis já traz efeitos positivos perceptíveis. Por fim, os empreendimentos no Centro também geram arrecadação por meio da Outorga Onerosa, contribuindo para o fundo de desenvolvimento urbano de Niterói.
Ainda falando sobre o seu TEDx, você mencionou a revitalização da Praça XV que resultou em uma mudança cultural: de um espaço onde andar descalço era proibido para um local tomado por skatistas e patinadores. Como as cidades podem estimular novas dinâmicas sociais por meio do urbanismo?
Verena Andreatta: A oferta de espaços públicos de qualidade promove o interesse de camadas da sociedade para desenvolver usos diversos. É comum observar praças cheias de gente, adultos, jovens e crianças, desfrutando de mesas de jogos, quadras esportivas e brinquedos infantis. Na Praça XV, a grande esplanada criada na superfície, com paginação de piso uniforme, contínuo entre a Rua Primeiro de Março e a Estação das Barcas, permitiu a sua ocupação pelos skatistas. Os governos municipais devem estar atentos às tendências da sociedade e colaborar para que o uso dos espaços públicos contemple as novas necessidades da população. Por exemplo, o Caminho Niemeyer, em Niterói, ao integrar sua grande explanada com edifícios do arquiteto na cidade, transformou-se em um mirante à beira-mar e brindou os cidadãos com a possibilidade de usos múltiplos: festas, carnavais e shows.
Como garantir que as transformações urbanas sejam inclusivas, acessíveis e beneficiem toda a população, e não apenas a determinados grupos?
Verena Andreatta: Os espaços públicos devem ser transformados para favorecer aspectos de urbanidade, tolerância e criatividade dos seus habitantes. Não é tarefa fácil. Mas temos de aprender com os bons exemplos, como as praias da cidade carioca, onde a acessibilidade e a inclusão de diversos setores da sociedade se fazem mais presentes. As cidades são complexas e devem ser pensadas tanto por equipes constituídas por profissionais de diversas formações, quanto a partir do debate com os cidadãos, em Conselhos de Políticas Urbanas, Conferências de Cidades, audiências públicas, entre outros sistemas de participação da população.
Caso tivesse a oportunidade de requalificar um espaço urbano no Brasil, qual seria sua escolha e quais aspectos transformadores você priorizaria nesse projeto?
Verena Andreatta: Tenho pensado em um programa para tratar de espaços públicos estratégicos no entorno das paradas e estações de transportes públicos. O Rio de Janeiro possui uma rede arterial de transporte público que integrou o território municipal e que hoje é uma rede abrangente. Mais de 70% da população se desloca a pé para chegar a algum desses lugares. Estou falando, portanto, dos entornos das estações e terminais de trem, barcas, ônibus, metrô, bonde, os quais, somados, chegam a aproximadamente 400 pontos.
Destes, eu escolheria 40, para implantar projetos transformadores, que garantam a esses espaços um desenho urbano, com critérios de conforto do ambiente, assim como equipamentos, bancos, iluminação adequada e arborização. O Instituto de Arquitetos poderia convocar um concurso público, pois atualmente inúmeros profissionais são formados justamente para atender à demanda de projetos para o espaço público. Promover o conforto no percurso das casas e conjuntos habitacionais até os transportes públicos e transformar os espaços dos entornos de estações e paradas dignificaria a vida urbana.
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