Início » Inovação » Uma arquitetura para chamar de nossa
Uma arquitetura para chamar de nossa
Com técnicas e materiais regionais, arquitetura vernacular pode ser a solução para os desafios globais, a partir da ação local.
Por
Ana Cecília Panizza em 30 de julho de 2024 7minutos de leitura
Matheus de Vasconcelos Casimiro (Foto: Divulgação)
Na arquitetura e na construção das cidades, o antigo e o novo podem se unir para contar a história de um lugar, de um povo. Mas, por meio da arquitetura vernacular, elas podem também contribuir para a descoberta de modelos de habitações mais sustentáveis, ajudando o setor da construção civil a responder a um de seus maiores desafios, já que, segundo o Relatório de Status Global para Edificações e Construção do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUMA), feito em parceria com a Aliança Global para Edifícios e Construção, o setor foi responsável por 37% da energia operacional global e das emissões de CO2 em 2022. Como metade dos edifícios que existirão até 2050 ainda não foi construída, como projeta o documento, essa é a oportunidade do setor reimaginar os prédios do futuro. Prédios que priorizem resiliência, reutilização de materiais, energia renovável e um modelo de construção de baixo carbono.
Em entrevista exclusiva ao Habitability, o arquiteto, urbanista e pesquisador Matheus de Vasconcelos Casimiro fala sobre as vantagens da utilização da arquitetura vernacular e como viabilizá-la, além de traçar um breve histórico do uso de materiais na arquitetura e construção no Brasil. Com doutorado acerca da questão ambiental no planejamento urbano da capital paulista, ele defende que se quebre o mainstream e se adote uma arquitetura brasileira, para chamar de nossa, inclusive nas faculdades.
O que engloba o termo “arquitetura vernacular”?
Casimiro: o nome provém de “vernáculo”, termo que deriva do latim, vernacŭlus, referência a nativo, próprio de um lugar, doméstico. Assim, arquitetura vernacular consiste em construções – geralmente habitações – fortemente ligadas ao povo de uma região e que utilizam técnicas locais, além de recursos e materiais disponibilizados pelo meio físico e geográfico da região: pedra, barro, taipa (pau-a-pique), adobe, madeira, bambu, palha, junco e até gelo, no caso dos iglus, que são feitos de neve comprimida e abrigam povos na Groenlândia, no norte do Canadá e no Alasca.
Assim, a arquitetura vernacular carrega consigo fortes tradições, saberes e costumes de um grupo, configurando expressão de uma identidade cultural. E tem a vantagem de ser sustentável, pois seus materiais são naturais, com baixo impacto sobre o meio ambiente. Práticas arquitetônicas milenares – como de índios e de povos africanos, com técnicas, materiais e saberes passados de geração para geração – podem ser revisitadas e reproduzidas para conceber construções mais verdes.
Quais são as principais vantagens da arquitetura vernacular?
Casimiro: Quando importamos parâmetros que não têm nada a ver com nosso contexto, o ônus econômico, ambiental e social, é muito grande. Portanto, quando falamos em adotar situações mais propícias ao nosso local, em específico do resgate de questões vernaculares, estamos também falando de adotar uma postura mais condizente com o local de inserção que estamos tratando. Quando falamos de utilizar esse tipo de solução, trazemos muitas vantagens: melhor inserção, melhor comportamento térmico, mais economia e menor impacto ambiental. A arquitetura vernacular gera um melhor desempenho em todos esses fatores porque são soluções propícias para o lugar. Em um contexto de mudanças climáticas, em que vivemos, isso é fundamental para transformar essas externalidades negativas, sobretudo de impactos ambientais gerados pela indústria da construção civil.
Por que a arquitetura vernacular não tem sido utilizada pelos setores de arquitetura e construção nos últimos séculos?
Casimiro: porque desde o século 19, com o processo da Segunda Revolução Industrial, ficamos – como sociedade – muito propícios, dentro do processo da indústria civil, a aderir a soluções industrializadas que pudessem ser amplamente disseminadas para massificação do uso de determinadas soluções construtivas. Por exemplo, o uso de concreto e aço como solução estrutural para as edificações. Isso foi amplamente massificado e a gente praticamente o aderiu como modelo único. Durante o movimento moderno do começo do século 20, foi disseminado o uso de vidro, de estruturas de aço aparente, de concreto. Os principais emblemas culturais da formação da cultura desse período, não importa em que lugar do mundo, utilizava esses mesmos materiais. Há uma força cultural muito grande desses elementos na história da arquitetura que trazem essas referências construtivas como a única referência possível para se fazer uma boa arquitetura.
Quais são os principais desafios para se adotar arquitetura vernacular?
Casimiro: o desafio atual é romper com esse mainstream da forma de se pensar a arquitetura e valorizar soluções peculiares do aspecto do local. No período de colonização portuguesa foram adotadas soluções do colonizador, entendendo que várias soluções de construção vernacular, de pessoas que já habitavam o continente antes da exploração, eram inúteis – e que a gente deveria adotar o estilo português, dado pela colonização, como único possível para consolidar o País como sociedade. Existe uma força cultural de valorização desses poderes hegemônicos, sobretudo muito focados nos parâmetros europeus, estadunidenses, como formato de reprodução do que era adotado nessas áreas, em todos os cantos no mundo. O principal desafio é romper com isso e passar a valorizar soluções locais. Quando falamos do Brasil, tem a questão de lidar com um clima tropical muito peculiar, então adotar solução de aço e vidro, para nosso clima, é impensável. Não obstante, se a gente vai para as avenidas Faria Lima, Paulista, Berrini, com tantos edifícios corporativos, a gente tem adoção desse ideário – que não é nosso, que não foi pensado para o nosso clima, que não foi pensado pela nossa cultura, para nossa cultura. A gente se posicionar criticamente a essa posição é o principal desafio.
Como estimular o uso da arquitetura vernacular nos dias atuais?
Casimiro: no Brasil, a gente precisa da formação das pessoas vinculadas à indústria civil (arquitetos, engenheiros). Precisamos integrar, na formação, o conhecimento das técnicas das arquiteturas vernaculares. Praticamente toda faculdade há 20, 30 anos era pautada por exemplos de estudos e técnicas focadas única e exclusivamente em soluções estruturais vindas do aço e do concreto. Cada vez mais a gente vê que outras soluções – madeira, bambu, adobe –, por mais que ainda não sejam dominantes na nossa formação, já comparecem na formação de muitos dos alunos. Recentemente, por exemplo, o Mackenzie organizou um concurso para construir um marco para a prefeitura de Francisco Morato/SP usando como referência construtiva o bambu, por ser algo produzido na área, com menor impacto ambiental e uma estética que valoriza elementos específicos da cultura do lugar. Isso já tem sido realidade na formação dos alunos. E precisamos dar visibilidade e conhecimento, entender como se pode pensar e refletir sobre arquitetura e construção civil tendo como referência modelos de arquiteturas vernaculares.
A gente deveria também, para disseminar um pouco mais, cada vez mais repensar a cadeia da indústria civil, a forma como ela é organizada e estruturada, a quantidade que ela gera de lixo. Não tem sido incomum encontrar engenheiros se posicionando sobre como mudar estruturas de obra, como ter obras mais secas, como usar materiais mais baratos, que possam ser produzidos próximos da região da produção da obra, como forma de mudar o status quo que se tem na produção da indústria civil. Não tem como a gente evoluir no aspecto vernacular se não olharmos criticamente para a forma como é hoje a produção hegemônica. Esses caminhos são bons e importantes para a gente criar a sensibilidade de adotar essas soluções para nosso cotidiano de produção.
Quais são alguns exemplos de uso, nos dias de hoje, da arquitetura vernacular no Brasil e no mundo?
Casimiro: a jovem arquiteta brasileira Helena Ruette tem se especializado em construção de bambu e materiais ecológicos. Os formatos das obras replicam formatos existentes na própria natureza. Helena tem um trabalho incrível e tem encabeçado a discussão sobre o uso do bambu. Uma das prerrogativas dela é utilizar materiais – sobretudo bambu – como elemento de menor agressão à natureza e mostrar como a arquitetura consegue ser fundamentada nesses elementos.
Um projeto que tem repercutido é o do Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu [no povoado de Sumaúma, município de Vitória do Mearim, Maranhão], feito pelo escritório brasileiro Estudio Flume com participação da comunidade. É uma obra muito referencial porque se dedica a abrigar as quebradeiras de coco de babaçu [trabalhadoras rurais que vivem do extrativismo sustentável do babaçu, usado para fabricar cestos, carvão, azeite, sabão e artesanato]. Por fim, cito o trabalho do arquiteto africano Francis Kéré, nascido em Burkina Faso, na África, e radicado em Berlim, Alemanha. Kéré ganhou o Prêmio Pritzker de Arquitetura – o oscar da arquitetura – em 2022, pelo conjunto de sua obra. Foi o primeiro arquiteto negro e africano a ser premiado. E um traço da sua produção é a preocupação com o elemento vernacular, com a participação da comunidade, com a utilização de materiais característicos do local de inserção da edificação. O fato de ele ter sido premiado pelo Pritzker é uma mudança de como olhar a obra de um arquiteto. Kéré representa uma mudança de paradigma em diversos sentidos: pela questão racial e pelo conjunto da obra. Ele produziu uma escola construída com um tipo de vasilhame fabricado na própria região para criar aberturas de iluminação zenital (que possibilita a incidência de luz natural). A obra dele é fora da curva. Atualmente é a referência internacional para discussão sobre arquitetura vernacular.
O Habitability coleta dados pessoais fornecidos por você e, também, automaticamente, a partir das suas atividades de navegação.
Por padrão, as informações que você nos fornece, incluindo, eventualmente, dados que permitem a sua identificação, como acontece se você optar por receber nossa newsletter, não são conectadas às informações de navegação. Sendo assim, garantimos a você que não fazemos rastreamento individual de atividades.
Cookies estritamente necessários
Estes cookies são essenciais para que as nossas páginas funcionem adequadamente. Eles não podem ser desabilitados, pois, se forem, a disponibilização das nossas páginas ficará comprometida.
Os cookies estritamente necessários normalmente são ativados a partir de uma ação tomada pelo usuário, que equivalem a uma solicitação de serviços, como entrar em um de nossos domínios. Esses cookies não armazenam nenhuma informação pessoal identificável.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará ativar ou desativar os cookies novamente.
Cookies de terceiros
Este site usa o Google Analytics e tags de parceiros para coletar informações anônimas, como o número de visitantes do site e as páginas mais populares.
Manter esse cookie ativado nos ajuda a melhorar nosso site.
Ative primeiro os Cookies estritamente necessários para que possamos salvar suas preferências!