Duas décadas do Estatuto da Cidade e a busca pelo equilíbrio urbano continua

Do papel à rua, Estatuto da Cidade regulamenta a reforma urbana, mas enfrenta o desafio da aplicação e a pressão da especulação imobiliária.

Por Marcia Tojal em 23 de dezembro de 2025 4 minutos de leitura

Arranha-céus modernos em uma área urbana, com árvores verdes na frente e céu azul ao fundo, destacando a importância do Estatuto da Cidade na organização urbana.
Foto: John_T/ Shutterstock

Em um Brasil confrontado por abismos socioespaciais e o desafio urgente das crises climáticas, o Estatuto da Cidade, Lei Federal n.º 10.257/2001, é o instrumento legal fundamental para reescrever o futuro das metrópoles. Esta legislação visionária, criada em 10 de julho de 2001, vai muito além de um mero conjunto de artigos. Ela é o marco que ancora o desenvolvimento urbano em pilares de justiça, coletividade e sustentabilidade, refletindo uma nova e melhor forma de viver dentro do território urbano. Mas 20 anos depois, embora avanços importantes tenham sido alcançados, os problemas ainda não foram superados. O protagonismo do planejamento e participação social, seguem, no entanto, sendo os pilares estratégicos para as transformações necessárias.

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O contexto histórico que resultou no Estatuto da Cidade

Vista aérea da cidade de São Paulo destacando a importância do Estatuto da Cidade na urbanização sustentável e planejamento urbano.
Foto: Pedro Magrod/ Shutterstock

A origem do Estatuto da Cidade remonta a um longo processo de lutas e discussões que ganharam corpo no movimento de Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade no País. Segundo publicação do ArchDaily, site especializado em arquitetura, o Brasil, até a metade da década de 1950, apresentava uma característica demográfica distinta, com a maior parte de sua população vivendo em zonas rurais, sendo que menos de 30% dos habitantes residiam em áreas urbanas. Contudo, impulsionado por um rápido processo de industrialização, o País passou por uma intensa transição do modelo agrário exportador para o urbano industrial. Em um período inferior a cinquenta anos, essa transformação gerou um massivo êxodo rural, alterando profundamente e de forma acelerada a estrutura e a paisagem das cidades brasileiras.

Esse crescimento, contudo, foi desordenado e desigual, gerando um brutal déficit na oferta de moradias, infraestrutura e serviços. O direito de propriedade, de caráter quase absoluto em legislações anteriores, não era suficiente para mitigar a segregação espacial.

A Constituição Federal de 1988, respondendo a esse clamor social, dedicou um capítulo à Política Urbana, encontrados nos artigos 182 e 183, introduzindo o conceito inovador de que a propriedade urbana deve cumprir sua função social.

O Estatuto da Cidade nasceu, portanto, como a regulamentação desses artigos constitucionais, estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana e afirmando que o uso da propriedade deve beneficiar o bem coletivo, a segurança, o bem-estar dos cidadãos e o equilíbrio ambiental. A sua aprovação em 2001, após anos de tramitação, foi um ponto de virada, propondo uma nova ordem jurídico urbanística com foco nas inclusões social e ambiental.

Instrumentos de transformação

Pessoas aproveitando um dia ao ar livre em um parque com gramado, árvores e uma colina, com várias atividades sociais ao entardecer.
Foto: wtondossantos/ Shutterstock

O principal legado da lei é o conjunto de ferramentas para induzir os municípios a um planejamento mais inclusivo e democrático. O Estatuto tornou o Plano Diretor, por exemplo, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes e para aquelas com alto impacto ambiental ou turístico.

Segundo publicação da Exame, o Plano Diretor se estabelece como a lei municipal essencial que traça as diretrizes para o crescimento ordenado e o desenvolvimento urbano de todo o território da cidade. Seu propósito fundamental é elevar a qualidade de vida dos cidadãos, agindo diretamente para mitigar as desigualdades socioeconômicas e, por consequência, construir cidades mais inclusivas, justas e ambientalmente equilibradas.

Entre os instrumentos mais importantes, que buscam regular o uso do solo e combater a especulação imobiliária, estão:

  • IPTU Progressivo no tempo e parcelamento, edificação ou utilização compulsórios: visam forçar a utilização de terrenos urbanos vazios, subutilizados ou não utilizados, penalizando o proprietário que não der a devida função social ao imóvel.
  • Outorga onerosa do direito de construir: permite que o proprietário construa acima do limite básico estabelecido pelo Plano Diretor, mediante contrapartida financeira ao município, cujos recursos devem ser aplicados em infraestrutura e habitação popular.
  • Estudo de impacto de vizinhança (EIV): obriga o Poder Público municipal a analisar as consequências de grandes empreendimentos na qualidade de vida da população local, garantindo a gestão democrática.
  • Usucapião especial de imóvel urbano e zonas especiais de interesse social (ZEIS): instrumentos voltados à regularização fundiária e à garantia de moradia para a população de baixa renda.

20 anos passados, problemas não superados

Segundo documento organizado por Edésio Fernandes, jurista e urbanista com vasta experiência no Brasil e internacionalmente, em 2001, o desafio era transpor os princípios da Constituição para a prática municipal e construir uma cultura de gestão urbana participativa (Observatório das Metrópoles, 2021). O foco estava em aplicar os novos instrumentos para reverter a segregação e a informalidade fundiária, sequelas do modelo de crescimento urbano anterior.

Duas décadas depois, a legislação do Estatuto da Cidade é reconhecida internacionalmente. Houve uma ampliação significativa da abrangência dos Planos Diretores, incorporando com mais clareza os temas da função social e da sustentabilidade. A exigência da gestão democrática, com a inclusão de mecanismos de participação como audiências e debates públicos, trouxe maior transparência aos processos de planejamento.

No entanto, o avanço da legislação não significou o fim dos problemas. De acordo com o artigo “Planos Diretores em linha do tempo: Cidade brasileira 1960- 2015”, ainda é um desafio a aplicação da lei. A metropolização do espaço se acentuou e a complexidade das grandes concentrações urbanas impõe obstáculos à gestão. Segundo Betânia Alfonsin em entrevista para o Brasil de Fato, a política urbana no Brasil está sendo descaracterizada e desdemocratizada. Leis vêm sendo aprovadas no Congresso Nacional distorcendo de forma muito clara a política urbana aprovada pela Assembleia Constituinte. O futuro do Estatuto da Cidade, como apontam instituições como a ONU Habitat, exige um olhar constante para a inovação e o fortalecimento de seus princípios, garantindo que o desenvolvimento urbano seja de fato inclusivo e sustentável. O papel do planejamento e da participação popular, pilares da lei de 2001, segue sendo o motor essencial para a construção de uma vida urbana mais justa no Brasil.

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