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“Nem daqui, nem de lá, todos somos uma mistura de histórias, culturas e origens”, diz arquiteta Gloria Cabral
Entre culturas e memórias, arquiteta desafia os padrões da arquitetura, ressignificando materiais, conceitos e práticas.
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Nathalia Ribeiro em 27 de janeiro de 2025 9minutos de leitura
Gloria Cabral (Foto: Arquivo pessoal)
A trajetória de um arquiteto reflete, muitas vezes, a soma de lugares, memórias e sensações vividas. Para a arquiteta Gloria Cabral, as culturas de dois países desempenharam esse papel. Filha de paraguaios, nascida no Brasil e criada em Assunção, sua infância foi marcada por uma constante exploração dos espaços ao seu redor, com referências da arquitetura moderna, como o colégio que estudou, projetado por Affonso Reidy, e o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), de Lina Bo Bardi. Mesmo ainda muito jovem, esses ambientes despertavam nela questionamentos sobre a funcionalidade das formas e a essência dos materiais.
A conexão precoce com a arquitetura foi mais do que a simples observação; foi descoberta e experimentação. Entre as vigas do colégio projetado por Reidy e os pisos marcados pela história na casa dos avós, ela encontrou um chamado: o desejo de criar espaços que dialogassem com o ambiente e com as pessoas. Hoje, sua prática não apenas busca soluções arquitetônicas funcionais, mas ressignifica materiais e, consequentemente, histórias e tradições, unindo pertencimento (e pertinência), inovação e ousadia para provocar transformações.
Em entrevista ao Habitability, Gloria compartilha sua visão arquitetônica enraizada no respeito ao meio, aos espaços e materiais, refletindo a essência de quem navega entre culturas, ideias e fronteiras com a sensibilidade de quem vê o mundo como um lar em constante transformação, do qual somos todos parte.
Você nasceu no Brasil e se formou no Paraguai. Como essa trajetória entre dois países influenciou sua perspectiva arquitetônica e sua visão de mundo?
Gloria Cabral: Meus pais são paraguaios e vieram para o Brasil quando jovens, sem falar português. Meu pai veio trabalhar em uma construtora que estava envolvida na construção da represa de Itaipu. Eles moraram em São Paulo por 10 anos e, durante esse período, eu nasci. Meus dois irmãos mais velhos são paraguaios, enquanto eu e minha irmã mais nova somos brasileiras. Quando tínhamos cerca de seis ou sete anos, nos mudamos para Assunção, no Paraguai. Lá, estudei em um colégio projetado por Affonso Reidy, e foi ali que minha relação com a arquitetura começou.
Como era essa relação?
Gloria Cabral: Embora minha infância também tenha sido marcada por momentos no vão do MASP e no Parque do Ibirapuera, lugares que ainda hoje me trazem lembranças e fortes sensações, foi no prédio do colégio que vivi a arquitetura de forma mais intensa, mesmo sem compreender muito na época. Lembro de observar as enormes vigas no alto, intrigada, imaginando como elas haviam sido construídas. Durante o recreio, caminhava à sombra dessas vigas até a cantina, e a linha de sombra se tornava minha passarela. Foi só na faculdade que descobri que o prédio era obra de um arquiteto renomado, considerado um dos melhores projetos de arquitetura moderna no Paraguai. Esse edifício teve um grande impacto na minha decisão de estudar arquitetura, porque me fazia questionar muitas coisas.
De que forma o colégio influenciou de maneira tão significativa sua decisão de se tornar arquiteta? Quais elementos do ambiente ou experiências vividas lá marcaram sua percepção sobre arquitetura?
Gloria Cabral: Por exemplo, as juntas de dilatação eram apenas linhas vazias entre os pilares, sem nenhum material preenchendo. Em um lugar, os pilares eram um pouco maiores que o normal e estavam afastados, formando um espaço onde morcegos moravam. Eu ficava encantada, vendo como o espaço funcionava e impedia que a água entrasse ali. Nas aulas, especialmente as de professores que eu não gostava tanto, eu ficava olhando as janelas e tentando entender como o sistema de ventilação funcionava. Quando as janelas superiores e inferiores eram abertas, elas criavam uma corrente de ar, já que não tinha ar-condicionado. Isso me inspirava muito.
Há outras inspirações de infância que te levaram para a arquitetura?
Gloria Cabral: Minha vivência em arquitetura também foi moldada pela casa dos meus avós. Era uma casa com telhado de palha e piso de tijolos. Como era uma área que alagava, o chão se transformava após cada enchente, parecia que os tijolos se acomodavam em novas posições, mudando a geografia do piso. Caminhar descalça sobre o chão frio era uma sensação única, especialmente em dias de calor intenso, típicos do Paraguai. O piso parecia um mapa, contando histórias da casa, com cicatrizes de paredes demolidas e diferenças entre os tijolos internos e externos. Cada detalhe falava de transformações e adaptações.
Você já disse em algumas palestras que não é “nem daqui, nem dali”. Como esse senso de pertencimento múltiplo impacta sua abordagem arquitetônica?
Gloria Cabral: Quando fui para o Paraguai, meu sotaque denunciava que eu não era de lá. Por outro lado, ao voltar para o Brasil, eu também não era completamente daqui. Vivo entre duas sensações, como na frase de Facundo Cabral: “Não sou daqui, nem sou de lá”. O Jorge Drexler também trouxe outra perspectiva com sua música: “Yo no soy de aquí, pero tú tampoco, de ningún lado del todo, y de todos lados un poco.” Ele expressa bem essa ideia de pertencimento múltiplo. Aqui no Brasil, por exemplo, há uma grande exaltação ao que é “nativo” ou “raiz”, mas quem realmente pode dizer que é completamente daqui? Todos somos uma mistura de histórias, culturas e origens.
Quando começamos a entender que somos todos daqui, como as árvores, como o solo, passamos a conviver melhor com o mundo ao nosso redor. Gosto muito de pensar na diferença entre pertencimento e pertinência. Em espanhol, a palavra “pertenencia” pode ser confundida com a ideia de posse, algo que te pertence, algo de que você é dono ou dona. Mas, para mim, pertencimento tem mais a ver com onde você escolhe estar e como você ocupa o lugar. E aí entra a pertinência: é preciso ser pertinente ao lugar onde se está. Não posso simplesmente chegar como um aspirador, sugando tudo, se quero pertencer e se quero ser pertinente ali, preciso pensar no que é pertinente àquele espaço, àquele contexto.
Durante seu tempo como sócia-titular no Gabinete de Arquitectura, renomado escritório do Paraguai conhecido por sua abordagem sustentável, quais lições você aprendeu que influenciam sua prática profissional e sua visão de arquitetura até hoje?
Gloria Cabral: Quando terminei o colégio, não sabia ao certo o que cursar. Estava em dúvida entre arquitetura, medicina ou matemática, pois queria estudar tudo. Quando escolhi arquitetura, a experiência foi inicialmente frustrante. Parecia que tudo girava em torno de usar materiais que estavam “na moda”, e eu pensava: “Como vou transformar a cidade assim? Para que serve um arquiteto, afinal? Apenas para fazer escolhas estéticas?”. Quase abandonei o curso, pensando que teria sido mais útil na medicina, salvando vidas.
Foi então que conheci o Gabinete e, quando me tornei sócia, o reaproveitamento de materiais deixou de ser apenas uma questão econômica e passou a refletir um compromisso com a gestão responsável dos recursos energéticos. Reutilizar materiais já existentes e descartados não só economiza energia, mas também gera mais oportunidades de trabalho, valorizando a mão de obra.
O uso de materiais reciclados, como tijolos de demolição, é uma marca do seu trabalho. Poderia compartilhar os desafios de adotá-los em projetos arquitetônicos?
Gloria Cabral: Um dos momentos mais significativos da minha carreira foi a obra da Teletón, que vejo como um dos meus filhos. Os diretores queriam usar tijolos novos, alegando que seria mais rápido do que reutilizar os tijolos de demolição. Para provar o contrário, me dediquei a acompanhar todo o processo: desde limpar os tijolos, retirar o reboco antigo, até selecionar os materiais em meio aos entulhos. Passei dias no calor, observando o rendimento e calculando o tempo necessário. Ao final, demonstrei que, embora a reutilização exigisse mais mão de obra, o custo era equivalente ao de materiais novos, gerando menos impacto.
Isso aconteceu há 17 anos. Naquela época, começava-se a falar sobre sustentabilidade, mas o tema ainda era muito marginal, quase utópico. Lembro que, no meu TCC da faculdade, propus uma cidade que funcionasse sem carros. Planejei um modelo urbano onde tudo pudesse ser feito a pé ou de bicicleta. Argumentei que era viável: 20 km poderiam ser percorridos de bicicleta em uma hora, e 4 km a pé, no mesmo tempo. Então, organizei os módulos urbanos de forma que as pessoas pudessem se deslocar caminhando em até 10 minutos para tarefas do dia a dia. Deixei os carros fora da equação.
Gloria Cabral: Os professores me chamaram de louca. Meu TCC foi considerado absurdo por quase todos os professores, exceto meu tutor, que me apoiou. Embora tenha apresentado a ideia em uma palestra em Rosário antes da faculdade, onde foi aceita, não obtive a nota máxima, pois muitos achavam o conceito inviável na época. Hoje, quando vejo cidades enfrentando problemas como alagamentos, trânsito caótico e chuvas que expõem ainda mais as falhas do planejamento urbano, fico pensando: continuamos construindo cidades focadas no transporte por carros. É sempre mais asfalto, mais vias, o mesmo modelo insustentável que já mostrou não funcionar. Isso, sim, é loucura.
Assim como no seu TCC, o projeto Teletón também enfrentou resistência quanto ao uso de tijolos de demolição em favor de alternativas mais rápidas. Como você enxerga essa resistência frente às inovações mais sustentáveis?
Gloria Cabral: Quantos prédios de demolição existem? Há muito material disponível! No ano passado, por exemplo, comecei a trabalhar em um projeto para criar um espaço público em Estocolmo, mas o projeto foi suspenso devido a decisões políticas e militares que cancelaram construções em espaços públicos abertos. Durante o processo, visitei empresas especializadas em demolição de prédios e fiquei impressionada com o nível de organização: tudo era padronizado para reaproveitamento. Artefatos sanitários, dutos de ar-condicionado, portas, janelas e vidros eram catalogados e vendidos com antecedência. No entanto, quando perguntei sobre tijolos, disseram que não valia a pena recuperá-los inteiros, pois demandava muito tempo e mão de obra.
Gloria Cabral: Insisti que não precisava de tijolos intactos, os quebrados já serviriam, e a resposta foi: “Nesse caso, temos mais de 50 prédios demolidos com materiais disponíveis.” Assim, consegui tijolos de graça para o projeto, algo semelhante ao que vivenciei na Fundação Cartier, em Paris, onde construímos uma estrutura de seis metros de altura com materiais de demolição. Esse trabalho envolve observar o que está disponível e aparentemente sem valor, resgatá-lo com cuidado e transformá-lo no melhor possível. A arquitetura com materiais reciclados precisa manter a qualidade, porque, muitas vezes, ao usar recursos reaproveitados, a estética é negligenciada. Para mim, na arquitetura, ética e estética andam juntas: quando a ética é levada ao máximo, ela cria uma nova estética. A questão não é o material ser velho ou novo, mas o que fazemos com ele.
Nos seus projetos há uma forte sensibilidade às condições climáticas, como a preocupação em criar sombras no calor extremo do Paraguai. Além disso, você também já trabalhou em Veneza, levando em consideração as particularidades. Trabalhar em locais tão distintos exige flexibilidade cultural e técnica. Como você adapta essas estratégias para diferentes contextos?
Gloria Cabral: O primeiro exercício que acredito ser essencial é observar como a natureza trabalha. Nosso corpo, por exemplo, passa por mudanças constantes: trocamos a pele, o cabelo se adapta ao ambiente e às condições que enfrentamos. Esses processos naturais são uma resposta às necessidades do lugar onde estamos, mas a arquitetura moderna parece ter esquecido isso. Entendo que, no pós-guerra, havia uma lógica para construir de forma padronizada e rápida, já que era necessário reconstruir muitas coisas em pouco tempo.
Contudo, continuar aplicando esse mesmo modelo em qualquer lugar do mundo, ignorando as particularidades de cada região, é algo que está fora de contexto hoje. Por exemplo, no Paraguai, onde as temperaturas podem alcançar 50 graus, construir sombra é vital para a sobrevivência. Já em Estocolmo, a relação com a sombra é completamente diferente. Em um lugar onde o sol aparece por poucas horas e os dias são longos e escuros, a sombra não é uma necessidade de sobrevivência, mas algo que pode criar um jogo cenográfico, transformando os raros raios de sol em elementos de beleza e significado. Não se trata apenas de escolher materiais, mas de entender como o ambiente molda as necessidades humanas.
Em algumas palestras, você mencionou que sua prática já foi vista como pitoresca e hoje é referência em sustentabilidade. Como você vê a evolução do interesse global por essa temática?
Gloria Cabral: Esse interesse é maravilhoso, porque é contagiante. Comigo aconteceu algo especial quando estava na Fundação em Paris, construindo módulos com tijolos de demolição. Uns meses antes, um carpinteiro no Paraguai, que trabalhava comigo, comentou que queria construir um quarto no jardim para o filho, reutilizando materiais disponíveis. Começamos a planejar como isso poderia ser feito, mas, algum tempo depois, ele me ligou dizendo que era impossível, pois sua esposa achava uma loucura a ideia de construir com aqueles materiais.
Pedi que esperasse uma semana. Nesse intervalo, concluímos a exposição em Paris. Tirei uma foto do resultado e enviei para ele, dizendo: “Mostre isso para sua esposa e diga que foi feito aqui em Paris.” Ele mostrou, e a reação foi incrível, tanto da esposa, quanto de outras pessoas. Esse tipo de aceitação social é fundamental. Não adianta fazer o que consideramos o melhor se as pessoas não enxergam o valor ou não se sentem motivadas a replicar. Precisamos desse retorno, dessa validação, para que as ideias realmente ganhem força e sejam celebradas.
Quando empresas, instituições ou construtoras abraçam essas mudanças e criam espaços dedicados a isso, a transformação se torna mais acessível e amplamente aceita. É algo que não apenas inspira, mas constrói pontes humanas. Por isso, sou frequentemente convidada para dar palestras em diferentes partes do mundo. Apesar de ter 40 anos, já trabalho com essa abordagem há mais de 20. É a única forma como sempre trabalhei; nunca fiz arquitetura de outra maneira.
Você adotou um modelo de trabalho que valoriza o tempo, o espaço e o bem-estar. Como trazer essa filosofia para o ensino de arquitetura tradicional e para as práticas profissionais já estabelecidas no mercado?
Gloria Cabral: É curioso como as definições de “tradição” mudam com o tempo. Quando falamos de arquitetura tradicional, para alguns, isso remete ao concreto, enquanto para outros, como no período do Oscar Niemeyer, a tradição era o tijolo, e o concreto representava a inovação. Então, o que realmente define o que é tradicional? Quanto tempo construímos com tijolos ou concreto? Há quanto tempo tratamos nossos corpos com alimentos e exercícios antes de adotarmos pílulas como solução? A tradição, no fim, é uma escolha coletiva sobre o que desejamos perpetuar.
Isso tem a ver com a capacidade de transformação sobre a qual você falou anteriormente?
Gloria Cabral: Tudo é cíclico e pode ser ressignificado. Lembro de uma praça em Assunção onde cercas estavam sendo instaladas, enquanto, em outra cidade, as cercas estavam sendo removidas e a ação era celebrada. Isso mostra como as coisas podem se transformar. Da mesma forma, quando vejo iniciativas que trocam brinquedos que remetem a guerras por brinquedos lúdicos, percebo que existe, sim, esperança para mudar o mundo. Muitas vezes, fui questionada por outros arquitetos que, de forma quase cética, me perguntavam se eu realmente acreditava que o amor ou minhas ideias poderiam mudar o mundo. Minha resposta é sempre a mesma: claro que sim! Se eu não acreditasse, não faria o que faço. Tenho plena convicção de que, quando alguém entra no meu escritório, as mudanças que encontra ali deixam uma marca. Talvez a rotina os alcance novamente, mas algo diferente sempre permanece. E é nesse detalhe que começa a transformação.
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