Em vez de jardins na cidade, por que não uma cidade-jardim?

Embora pareça um tanto utópico, conceito de cidade-jardim, de 1898, até hoje inspira soluções aos desafios das cidades.

Por Redação em 9 de novembro de 2023 6 minutos de leitura

cidade-jardim

Uma cidade com formato circular. Do centro até a circunferência, seis bulevares cruzam transversalmente a área, dividindo-a em seis partes iguais. No núcleo há um jardim bem cuidado e ao redor ficam a prefeitura, sala para concertos e conferências, teatro, biblioteca, museu, hospital, moradias e indústrias, todos circundados por áreas verdes. Essa é a descrição de cidade-jardim, conceito concebido em 1898 pelo urbanista inglês Ebenezer Howard. 

No livro “Cidades-Jardins de Amanhã”, ele revela em detalhes sua proposta arquitetônica, cujo objetivo é organizar e melhorar as cidades por meio da incorporação de elementos rurais, tornando-as autossuficientes, sustentáveis, saudáveis e agradáveis, com integração das áreas urbanas com espaços verdes, garantindo qualidade de vida, aluguéis a preços justos e entretenimento acessível a todas as classes sociais. 

Para isso, a cidade-jardim descrita por seu idealizador tem um palácio de cristal com jardim de inverno onde funciona um mercado municipal, além de parque público com área de recreação e casas com jardins comuns e cozinhas cooperativas. Em uma grande avenida ficam escolas públicas com pátios, mais jardins e igrejas. 

Howard visualiza um lugar em que “as belezas da natureza possam ali abraçar e desenvolver cada um de seus habitantes; como salários mais altos poderão ser compatíveis com taxas e aluguéis reduzidos; como oportunidades fartas de emprego e perspectivas brilhantes de melhoria de vida poderão ser garantidas para todos; como o capital poderá ser atraído e a riqueza gerada; como as mais admiráveis condições sanitárias poderão ser asseguradas; como belas casas e jardins poderão estar ao alcance de todos (…)”. 

Para Howard, essa era a resposta aos problemas urbanos e às desigualdades sociais resultantes da revolução industrial, que causou êxodo rural, de um lado, e inchamento e crescimento desordenado das áreas urbanas, de outro. Sua teoria, portanto, tinha também forte cunho social, associando planejamento urbano a um sistema de gestão comunitária.

Ilusão ou realidade 

Embora pareçam um tanto utópicas para os parâmetros atuais, as ideias de Howard chegaram a ser implementadas – Letchworth, em 1903, e Welwyn, em 1920, ambas na Inglaterra e com supervisão do próprio Howard, foram as primeiras “cidades-jardim”. Ainda hoje, os conceitos são retomados e debatidos por arquitetos, urbanistas e paisagistas em busca de modelos que respondam aos desafios atuais. Assim, a cidade-jardim figura como uma das escolas de urbanismo estudadas para se alcançar a cidade ideal, ao lado do Modernismo, Novo Modernismo, Cidade para as Pessoas e Cidade de 15 Minutos.

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Mesmo com grande distanciamento em relação à concepção original da cidade ideal traçada pelo urbanista inglês, propostas urbanísticas de hoje almejam – tal como a cidade-jardim – o uso e a valorização de áreas verdes e a integração delas ao contexto urbano para enfrentar problemas dos municípios, que, desde 1898, se agravam, como enchentes, trânsito excessivo e poluição. 

Cidade-esponja, uma versão da cidade-jardim?

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Um dos conceitos mais assimilados da cidade-jardim, o protagonismo do verde, foi elevado a um outro nível pelo conceito de cidade-esponja, do urbanista e arquiteto chinês Kongijan Yu. Nele, a implementação de espaços verdes nas cidades busca reproduzir a dinâmica das próprias florestas, em que a absorção e escoamento da água se dão de maneiras natural e sistemática.

Um exemplo dessa adaptação está nos corredores em volta do rio em Pujiang, província do leste chinês. O parque conta com 16 quilômetros de comprimento e fica localizado nas margens do rio que corta a cidade, o Puyangijiang.

O projeto, além de conseguir incorporar a natureza dos meandros do rio e trazer as pessoas de volta para a região, ajudou a despoluir as águas, uma vez que foi acompanhado por uma das campanhas de restauração ecológica baseadas em pesquisas de Yu. O arquiteto tem como princípio criar “harmonia entre a terra e as pessoas e ambientes sustentáveis para o futuro”. Seus estudos inspiraram a China na implementação de iniciativas nacionais de proteção ao meio ambiente. A empresa de Yu, Turenscape, tem contribuído para essa abordagem com centenas de projetos construídos em mais de 200 cidades, principalmente chinesas. 

Soluções brasileiras

Em menor escala, pequenas iniciativas visam o mesmo fim. Na cidade de São Paulo os jardins de chuva ampliam a permeabilidade do solo e diminuem os efeitos de alagamentos. Implementados pela prefeitura nas diferentes regiões da capital, têm também a finalidade de levar bem-estar para a população e ajudar a promover a biodiversidade urbana. 

Ainda na capital paulista, o projeto Viva o Verde SP lançado em abril de 2023 busca diagnosticar a situação dos parques da cidade e apontar melhorias, a fim de diminuir os efeitos climáticos relacionados à poluição, ao trânsito e demais consequências da urbanização. O projeto engloba ações como criação de áreas verdes, plantio de árvores, recuperação de córregos e nascentes, implantação de sistemas de coleta seletiva e incentivo à adoção de práticas sustentáveis.

Iniciativas de Fortaleza, no Ceará, e Manaus, no Amazonas, também têm chamado atenção do mundo. As duas cidades foram as únicas brasileiras selecionadas para o programa Cities Forward, do governo dos Estados Unidos em parceria com órgãos ambientais para auxiliar cidades da América Latina, do Caribe e dos EUA em projetos ecológicos, econômicos e sociais, a partir do desenvolvimento sustentável e da troca de experiências.

Nos próximos dois anos, as cidades selecionadas participarão de encontros com consultorias e traçarão planos de ação de projetos financiáveis e de alto impacto com base em percepções compartilhadas e adquiridas a partir dos contatos com os seus pares, os consultores regionais e a equipe do programa.

Fortaleza participa com o Conector Verde Urbano, da prefeitura, que consiste em um sistema multifuncional de áreas verdes que abrangerá bairros vulneráveis e aumentará a cobertura arbórea, criando uma conexão entre hubs de áreas verdes, além de implementar agricultura urbana, restauração de matas ciliares, recuperação de nascentes e jardins de chuva, para mitigar efeitos de ilhas de calor e alagamentos decorrentes de eventos climáticos extremos.

Veja também no episódio 23 do podcast Habitability:

Já Manaus participa com o programa de despoluição de Igarapés, do governo estadual, com intuito de recuperar e preservar os igarapés da cidade, que estão contaminados por resíduos domésticos e industriais. A iniciativa viabiliza ações de limpeza, retirada de entulhos e educação ambiental para a população.

A conexão com o verde também reflete a busca pelo maior contato com a natureza em prol de maior qualidade de vida, desejo que cresceu entre moradores de grandes cidades a partir da eclosão da pandemia da Covid-19, em 2020, e do consequente advento do home office. Com isso, características de cidade-jardim inspiraram o setor imobiliário a oferecer espaços habitacionais que conciliam áreas verdes e comodidades das metrópoles, em atendimento a demandas atuais por essa maneira de morar.

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Enraizamento  

Por outro lado, a arquiteta Frances Holliss, em artigo no jornal britânico The Guardian, defende que, embora a pandemia tenha reacendido o interesse por locais que aproximam as habitações das áreas verdes, é preciso refletir se as cidades-jardim funcionariam atualmente ou se são apenas um olhar nostálgico para o passado. Para ela, a segregação entre espaços para morar e para trabalhar (separação que consta na cidade-jardim de Howard) é um problema para os municípios porque leva à necessidade de deslocamento dos trabalhadores entre suas casas e seus empregos. Por isso, segundo Holliss, a crise ambiental, o crescimento populacional, a escassez habitacional e a pressão sobre as infraestruturas de transporte não serão resolvidas pelo modelo de Howard. A solução, para ela, está na diminuição da necessidade de deslocamentos e no enraizamento das pessoas em seus bairros. 

Uma solução que a autora apresenta é intercalar ruas para habitações e ruas para locais de trabalho e conectá-las por jardins, com inclusão de lojas, padarias, restaurantes, comércios e outros ambientes perto das casas. Holliss enfatiza que esse formato poderia reformular a “maneira como pensamos a moradia e os espaços de trabalho no dia a dia, bem como uma série de estruturas de governança: do planejamento à tributação da propriedade”.

Cidade-jardim pelo mundo 

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Embora sejam consideradas as primeiras cidades-jardins implantadas no mundo, Letchworth e Welwyn se descolaram das ideias originais do seu idealizador porque o financiamento foi feito por grandes investidores. Assim, instalaram-se fabricantes e residentes da classe média, inviabilizando o conceito de propriedade acessível às classes baixas. 

Mesmo assim, preceitos da cidade-jardim se disseminaram para outras partes do mundo – não os relacionados à parte social da teoria de Howard, e sim a concepção de um lugar permeado de verde. Adaptações e reinterpretações do modelo foram feitas a partir de novos contextos geográficos e históricos e de acordo com particularidades de cada lugar. Sofreram influências da cidade-jardim Nova Iorque, Boston e Virginia, nos Estados Unidos, além de países como Peru, África do Sul, Japão e Austrália – e até a Cidade do Amanhã, de Walt Disney.  

No Brasil, a ideia inspirou os bairros Jardim América e Cidade Jardim, na capital paulista, no início do século 20. As cidades paranaenses de Maringá, Umuarama, Londrina e Cianorte foram concebidas a partir de preceitos de cidade-jardim. Goiânia/GO e Palmas/TO também estão na lista das cidades que beberam desta fonte. 

Legado 

Teorias com mais de um século, como a de cidade-jardim, podem não se encaixar totalmente à realidade atual, mas podem ser inspiração, inclusive, naquilo que não deu certo. O legado do urbanista não foi apagado pelo tempo, apenas vem se transmutando, pois seu propósito segue intacto: um lugar melhor para habitar, como escreveu o historiador norte-americano Lewis Mumford na edição inglesa de 1946 do livro “Cidades-Jardins de Amanhã”, de Howard: “no início do século XX, duas grandes novas invenções tomaram forma diante dos nossos olhos: o avião e a Cidade Jardim, ambos presságios de uma nova era: o primeiro deu ao homem asas e o segundo prometeu-lhe um lugar melhor para habitar quando descesse à terra.”