O homem é a terra que caminha, diz bioarquiteta Helena Granitoff

Em entrevista ao Habitability, a bioarquiteta e permacultora Helena Granitoff compartilha as lições para um futuro sustentável aprendidas das vivências em comunidades rurais e indígenas.

Por Nathalia Ribeiro em 12 de fevereiro de 2024 9 minutos de leitura

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Helena Granitoff no Tibá com amigos e o fundador do Instituto de Tecnologia Intuitiva e Bioarquitetura, Johan Van Lengen (Foto: Acervo pessoal de Helena)

Liberdade e ecologia, conceitos aparentemente distintos, são intrinsecamente interligados quando vistos através da lente da bioarquiteta e permacultora, Helena Granitoff. Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Helena traz consigo um olhar que começou a ser moldado pelas vivências em Macaé, o epicentro da indústria petrolífera no Rio de Janeiro, onde passou sua meninice. Essa paisagem urbana, tingida pela presença industrial, despertou uma inquietude: o que é a natureza, a liberdade e qual o papel do ser humano dentro desse ecossistema?

Em entrevista exclusiva ao Habitability, Helena Granitoff compartilhou sua jornada de sete anos em busca dessas respostas. Durante esse período, mergulhou profundamente em diferentes realidades, explorando comunidades remotas, convivendo com povos indígenas na Amazônia e vivenciando a rotina dos assentamentos rurais brasileiros. 

Foto: Acervo pessoal de Helena

Essas experiências proporcionaram à bioarquiteta a observação da interação entre o ser humano e o meio ambiente, além de uma profunda reflexão sobre a verdadeira essência da liberdade. Para ela, significa viver em harmonia com a natureza, reconhecendo a conexão intrínseca e assumindo nossa responsabilidade dentro desse vasto e complexo sistema vivo. Confira a seguir!

Qual foi o impulso que levou você a seguir o caminho da ecologia como bioarquiteta?

Helena Granitoff – Minha jornada iniciou quando comecei a questionar o significado de liberdade e ecologia. Lembro-me de ter aprendido que, em hindu, liberdade significa auto governança. Governança é essa capacidade de termos auto responsabilidade. Quando aumentamos nossa responsabilidade, ampliamos nosso campo de atuação. Se tenho um jardim para cuidar, também tenho uma parte maior da floresta da Mata Atlântica da qual serei o guardião. Isso aumenta minha responsabilidade e minha capacidade de governança, o que, por sua vez, aumenta minha liberdade, pois liberdade é a capacidade de nos autorregularmos.

Foi a partir desses questionamentos que você escolheu ser bioarquiteta?

Foto: Reprodução/ Instituto de Tecnologia Intuitiva e Bioarquitetura

Helena Granitoff – Conheci pessoas no Rio de Janeiro que me apresentaram um lugar incrível chamado Tibá, Instituto de Tecnologia Intuitiva e Bioarquitetura, fundado por Johan van Lengen, um holandês que veio para o Brasil fugindo da Guerra Fria. Desde os anos 1980, o Tibá convida indivíduos para um programa de aprendizagem de cinco semanas, vivendo em uma ecovila e trabalhando juntos. Essa experiência transformadora foi um grande ponto de referência para mim. Mudou-me profundamente na terceira semana. Antes disso, eu estava na faculdade de arquitetura. Mas, mesmo ali, no ambiente acadêmico, já houve um chamado mais social. Percebi que quem realmente molda a cidade são as pessoas. A construção da cidade é um esforço coletivo e cultural, não apenas uma responsabilidade individual do urbanista em conceber tudo perfeitamente.

Como a experiência de se envolver em diferentes culturas e comunidades influenciou sua compreensão do mundo enquanto pessoa e bioarquiteta?

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Na Jamaica, Helena ficou por um mês em uma comunidade rastafari, que planta seu próprio alimento.(Foto: Nicole Naios)

Helena Granitoff – Quando nos permitimos mudar nosso contexto e nos imergir em diferentes culturas, aprendemos de uma maneira muito particular. É algo abstrato que nosso corpo absorve, uma energia que gradualmente se desdobra. É como ter a coragem de se lançar no desconhecido, confiando que o melhor se revelará com o tempo. Ao chegar em uma comunidade, especialmente em uma cidade pequena ou em áreas rurais, é notável como as pessoas interagem: olham umas às outras, se cumprimentam. Esse tipo de acolhimento é transformador e essencial, pois nos lembra do nosso valor e da nossa humanidade.

Falando em se envolver em comunidades, recentemente você passou uma temporada em Serra Grande, no sul da Bahia. O que te atraiu para aquela região?

Helena Granitoff – Pessoas estão deixando cidades como Rio de Janeiro e São Paulo para se mudar para regiões como Serra Grande, onde a Mata Atlântica ainda está relativamente preservada devido ao cultivo de cacau, que remonta há cerca de 200 anos. Essa região tem árvores mais antigas e uma densidade maior de floresta. Em determinado momento, recebi a notícia de que havia um movimento crescente de ecovilas e comunidades em Serra Grande. O local está recebendo essas pessoas que buscam adquirir terras na região, geralmente lotes de aproximadamente 20 hectares, para adotar um novo estilo de vida baseado em princípios de cooperação comunitária e conservação ambiental.

E como funciona esse novo estilo de vida mais ecológico?

Helena Granitoff – Nesse modelo, cada família assume a responsabilidade de proteger a floresta local, ocupando parcelas de terra que variam de um a três hectares, tornando-se guardiã da floresta, o que permite uma área maior de floresta preservada. Eu me juntei a uma comunidade chamada Espaço Agroecológico, do MST, onde cada pessoa desempenha um papel por meio de uma abordagem conhecida como Sociocracia. Ou seja, eles adquirem o espaço de terra em conjunto e tomam todas as decisões por consenso, em reuniões semanais, seguidas de música e celebração. A comunidade surgiu como um assentamento do Movimento Sem Terra (MST) – [chamado Santa Maria] – no início nos anos 1990 e atualmente se destaca por sua prosperidade.

Como você se envolveu com o Espaço Agroecológico?

Helena Granitoff – Meu envolvimento com essa comunidade começou durante uma visita à feira local, onde conheci um dos membros do assentamento, a Loy. Ela estava convidando pessoas para participar de trabalhos voluntários na comunidade do assentamento de Santa Maria, liderada pela Dona Alice, que também é presidente da Associação dos Agricultores. Durante várias semanas, passei um tempo lá, absorvendo a atmosfera acolhedora. 

De que modo essa vivência no assentamento impactou sua abordagem e prática como arquiteta?

Helena Granitoff – Esta experiência influenciou significativamente minha atuação como arquiteta. Conheci pessoas que construíram suas próprias casas usando técnicas tradicionais, como a arquitetura do “Pé Descalço”, descrita no livro de Johan van Lengen. Uma dessas casas foi construída pela Valdelice, uma das líderes da comunidade, que também produz chocolate artesanal. O fato dela ter construído a própria casa demonstra que é viável e acessível construir uma casa usando recursos locais, com apoio da comunidade. O MST possui uma comunidade estabelecida, o que facilita a realização de projetos como a construção de casas e outras obras. Faz parte da cultura deles essa estrutura comunitária. Além disso, ele promove uma cultura de cultivo de alimentos próspero, cujo excedente pode ser compartilhado. 

Essa cultura do cultivo orgânico e agroecológico pode ser um dos pontos de integração harmônica entre o ser humano e a natureza? 

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Helena Granitoff – O assentamento, para mim, se tornou um parceiro valioso para aqueles que vêm das cidades em busca de aprendizado e integração em uma nova forma de viver. Quando plantamos nossa própria comida, há um elemento crucial: o amor. Esse amor cria uma geometria específica na comida, pois é plantada com essa intenção. Quando visitamos uma fazenda ou um sítio, podemos perceber o amor presente na produção dos alimentos destinados às mesas das pessoas. É algo belo de se ver, pois mostra que a comida só pode ser verdadeiramente nutritiva quando é cultivada com amor e abundância, permitindo que esse amor transborde e seja compartilhado com os outros. Ao sentir o chamado de ser um Guardião da Floresta, por exemplo, você está se dando a oportunidade de vibrar nesse transbordar de cuidado pela natureza e também absorver esses nutrientes que só são verdadeiramente obtidos quando você está em contato direto com a terra.

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Qual a importância da agroecologia para um estilo de vida mais sustentável?

Helena Granitoff – A prática da agroecologia é fundamental, pois ela está intrinsecamente ligada à ecologia e à bioconstrução. A agroecologia transmite conhecimento através das plantas, deixando mensagens que somos capazes de interpretar à medida que as cultivamos. Essa informação é transmitida por meio das práticas tradicionais combinadas com elementos tecnológicos, permitindo um trabalho mais eficiente e menos exploratório. Ao contrário da Revolução Verde dos anos 1980, que introduziu máquinas para substituir o trabalho humano, a permacultura busca um equilíbrio entre avanços tecnológicos modernos e técnicas ancestrais. Ela cria conhecimento em formato de jardins, não apenas os convencionais encontrados nas cidades, mas jardins férteis que fornecem alimentos. 

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Agora, falando a respeito da sua temporada com os povos originários na Amazônia. Quais são as principais lições que podemos aprender com os povos originários?

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Foto: Acervo pessoal de Helena

Helena Granitoff – Eles vivem em harmonia com o que a natureza oferece de forma primordial. São mais naturais, mais ligados à aventura e têm a natureza como companhia constante. Já na cidade, é como se fosse um lugar seguro, protegido do caos que a natureza poderia trazer. As cidades têm essa atmosfera meio imortal. Elas dão a sensação de que não vamos morrer, de que a humanidade vai continuar. Mas os povos originários não veem assim. É uma outra experiência com esse sentimento de imortalidade. É uma imortalidade que é vivida e vem da observação das coisas que sempre estão lá, como o céu e as árvores. Refletir sobre isso é importante o bastante para dar sentido à vida, representando uma atitude perante a existência. Essa perspectiva contribui para que eles sejam seminômades. A localização de suas casas e onde eles cultivam alimentos mudam gradualmente ao longo do tempo. É um processo lento e constante de mudança de lugar. Essa é uma sabedoria antiga dos povos das Américas, muitos dos quais falam sobre essa prática de caminhar e se adaptar. Eles dizem que o homem é a terra que caminha.

Durante sua estadia com os povos indígenas, você observou algum princípio ou técnicas arquitetônicas que poderiam ser atribuídas à construção moderna?

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Helena passou um mês na Amazônia e teve a oportunidade de aprender sobre o estilo de vida dos indígenas (Foto: Acervo pessoal de Helena)

Helena Granitoff – Na cidade, com certeza, a questão dos resíduos é algo importante para se considerar, especialmente nas bordas urbanas. Enquanto crescemos, muitos de nós aprendemos a focar na reciclagem, mas ao longo do meu caminho, descobri a importância de direcionar nossa atenção para os resíduos orgânicos, que são como nosso “ouro”, como dizem na permacultura. Esses resíduos retornam ao solo, nutrindo-o novamente, e é daí que vem o conceito da Terra Preta de Indígena. Por milhares de anos, os povos que vivem na floresta têm criado e fabricado essa terra fértil. No entanto, na cidade, quando não aproveitamos esse resíduo orgânico, ele representa uma parcela significativa do problema do lixo. Estudos indicam que cerca de 90% dos resíduos urbanos não recicláveis são compostos por resíduos orgânicos. Em vez de retornar ao solo para enriquecê-lo, muitas vezes esses resíduos acabam fermentando e tornando-se ácidos, não contribuindo para a nutrição da terra. 

De que maneira podemos ampliar essa conscientização sobre um estilo de vida mais ecológico e sustentável nas cidades?

Helena Granitoff – Precisamos regenerar nossa identidade e perceber que o futuro pertence às crianças. Elas têm uma compreensão mais clara de que todos somos iguais, apesar das nossas diferenças. As crianças vêm ao mundo com a pureza da natureza, ainda não influenciadas pela sociedade. No entanto, rapidamente absorvem as influências ao seu redor e as reproduzem. Para uma nova consciência emergir, a educação ambiental deve ser conduzida pela própria floresta. A floresta será a primeira e principal educadora da criança. Por isso, é essencial criar espaços onde as crianças possam desenvolver uma conexão genuína com a natureza e torná-la sua principal fonte de aprendizado. Por mais que queiramos ensinar como pais ao educar nossos filhos, simplesmente entregar livros a eles não é suficiente para transmitir os valores ancestrais que as crianças estão aqui para resgatar, recriar e cocriar. É essencial que esse processo ocorra em conjunto com um espaço de amor e conexão com a natureza.

Como práticas da bioarquiteta e da permacultura podem contribuir para a construção de comunidades mais sustentáveis e cidades resilientes?

Helena Granitoff – Como bioarquiteta, vejo a disciplina como ponto central, porque questiona como podemos proporcionar habitação digna e acessível para a humanidade. Ela nos leva a refletir sobre o significado de moradia e quais são os parâmetros e práticas que a tornam boa. Já a permacultura é essencial porque, se nos limitarmos apenas à arquitetura moderna, estaremos perpetuando um movimento predominantemente urbano. Esse movimento foi responsável por levar muitas pessoas do campo para as cidades. No entanto, à medida que saímos dessa fase, estamos redescobrindo o valor da vida comunitária e das atividades coletivas. Esse senso de coletividade é uma verdadeira riqueza, pois quando um grupo de pessoas se une em torno de um objetivo comum, cria-se um capital social e emocional que enriquece a comunidade como um todo. Essa união, esse amor compartilhado, é algo que realmente fortalece os laços comunitários.