“Um país sem memória continua errando”, afirma Vânia Feitosa

Em entrevista, especialista em gestão cultural fala sobre a importância do patrimônio cultural paras as cidades e para o País e os desafios para que ela seja inclusiva.

Por Nathalia Ribeiro em 10 de julho de 2025 7 minutos de leitura

Vânia Feitosa. patrimônio cultural
Vânia Feitosa (Foto: Arquivo pessoal)

Entre becos, fachadas e praças das grandes cidades, histórias, memórias e afetos moldam a identidade de quem nelas vive. Para Vânia Feitosa, administradora e especialista em gestão cultural, o patrimônio cultural é essa pulsação que conecta passado e presente, gente e lugar, tradição e transformação.

Paulista, sócia-fundadora da Cine a Vapor Produções, Vânia atua com mediação cultural em bairros, cemitérios, vilas operárias e centros urbanos, transformando o que parecia invisível em memória viva. Desde 2007, ministrando em São Paulo oficinas de empreendedorismo sociocultural e auxilia artistas e produtores em seus primeiros passos. Também atua como parecerista de editais culturais e é reconhecida pela experiência em gestão financeira de projetos públicos de cultura.

A cada história que resgata e compartilha, Vânia nos lembra que preservar é também resistir, e que não se faz isso sozinho, nem de cima para baixo. É preciso escuta, afeto, chão de comunidade. Nesta entrevista exclusiva ao Habitability, ela compartilha sua reflexão sobre a hierarquia simbólica do patrimônio, os desafios da gentrificação em centros históricos, o papel do patrimônio cultural imaterial e as possibilidades de um diálogo renovado entre passado, presente e futuro das cidades brasileiras.

Para começar, como você define “patrimônio cultural” dentro do contexto  urbano? 

patrimônio cultural, Recife
Recife – Pernambuco (Foto: Luis War/ Shutterstock)

Vânia Feitosa: Patrimônio cultural é tudo aquilo que compete a um povo, uma nação e nos faz sentir  pertencentes a algo, trazendo o sentimento de que faz parte da nossa vida e cotidiano. Por isso é algo mutável: nem tudo que já foi considerado patrimônio há algumas décadas, é ainda preservado nos dias de hoje, vide alguns locais que foram plenamente esquecidos pela sociedade e, no passado, eram lugares de plena convivência pública. 

Quais tipos de patrimônio cultural o contexto urbano pode abarcar?

Vânia Feitosa: Patrimônio cultural pode ser tanto o material – aquilo que podemos “tocar”, como imóveis, momentos e paisagens urbanas (conjuntos fabris que marcam um determinado bairro, ou mesmo uma vila operária, demonstrando um passado trabalhador daquele local) – quanto imaterial – aquilo que não pode ser tocado, mas sentido. São exemplos as festas de um bairro, o trabalho tradicional  de escolas de samba, onde a comunidade se engaja para manter o legado vivo, ou até mesmo determinados ofícios, onde a tradição é transmitida por gerações. Já imaginou ir no centro da cidade e comer um lanche preparado por uma avó que mantém a receita original por décadas? Taí um grande contexto urbano! 

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Você mencionou o patrimônio cultural imaterial, que muitas vezes é esquecido como parte da cidade. De que forma a valorização de saberes locais, como a culinária, as festas e os rituais, pode fortalecer o tecido urbano por meio da materialidade dos espaços?

Vânia Feitosa: O patrimônio imaterial é algo relativamente recente dentro da história da preservação, mas os saberes e fazeres de um povo contribuem para a geração de renda de milhares de pessoas e resultam em nossa identidade e legado para as futuras gerações, podendo ser utilizados como grandes atributos do turismo de base comunitária. 

Somente 7 dos quase 28 mil sítios arqueológicos no Brasil são tombados, menos de 0,03% do total, segundo o MapBiomas. O que isso revela sobre a hierarquia  simbólica entre construções e sítios arqueológicos em nosso País? Quais  narrativas podem desaparecer ou serem apagadas com esse desequilíbrio? 

Vânia Feitosa: Precisamos lembrar que só o fato de ser tombado, não garante a preservação, pois essa é apenas uma das etapas burocráticas da proteção do bem. Além disso, a comunidade precisa se engajar junto à iniciativa dos órgãos públicos e conselhos comunitários. Existe, sim, uma hierarquia em relação ao patrimônio, pois há sempre aqueles que decidem o que se preserva e o que se destrói, e as decisões nem sempre são justas: acabam por levar em conta modismos, interesses financeiros e, muitas vezes, exploratórios, levando à degradação e ao avanço sem critérios em determinadas áreas protegidas, fazendo com que os sítios fiquem desprotegidos por leis que não são cumpridas ou fiscalizadas. 

Uma das saídas para melhorar o desequilíbrio é a parceria com o comércio local, valorizando o trabalho da comunidade e incentivando o turismo sustentável de forma a gerar renda aos moradores que podem ser guardiões da natureza, preservando de onde se tira o sustento. 

Em muitos centros históricos, o processo de valorização e  preservação de patrimônios levou à expulsão de moradores antigos por meio da gentrificação, como ocorreu em Ouro Preto/MG, no Pelourinho, em Salvador/BA, e em partes da região portuária do Rio de Janeiro. Como equilibrar preservação e  justiça social dentro das cidades? 

Ouro Preto – Minas Gerais (Foto: Elkazthor/ Shutterstock)

Vânia Feitosa: Esse movimento tem ocorrido não só no Brasil, mas em muitos outros países, onde o turismo de massa acaba incentivando as locações por temporada e fazendo com que os moradores locais não consigam mais pagar o aluguel ou mesmo se manter no local devido ao aumento do custo de vida. Uma ideia para amenizar esse impacto seria oferecer incentivos aos proprietários de imóveis em zonas históricas e turísticas para que mantenham suas propriedades como residências para moradores da cidade, como a isenção do IPTU.

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Existem outras maneiras de equilibrar a preservação com a justiça social, como incentivar o comércio local a estender o horário das atividades e, junto ao governo municipal, realizar ações culturais para atrair mais público às regiões centrais. Caso a ocupação mista com moradia e comércio não esteja prevista no plano diretor municipal, este seria um bom momento para revisá-lo.

Alguns prédios antigos desocupados estão sendo comprados por investidores para serem retrofitados e oferecer moradia a trabalhadores, a preços e condições mais favoráveis. Dessa forma, é incentivada a ocupação dessas regiões por pessoas que não precisam se deslocar tanto para trabalhar, que consomem na região, aumentando o contato com o comércio local e gerando mais qualidade de vida.

Quando o novo entra em conflito com o patrimônio edificado, como em casos de grandes obras, reformas urbanas ou adaptações funcionais, como decidir o que deve ser preservado e o que pode dar lugar a outras necessidades da cidade? É possível pensar um patrimônio em diálogo com o presente e o futuro? 

Vânia Feitosa: É importante sabermos que o patrimônio e os lugares de memória são sempre espaços de  disputa. Há sempre alguém na hierarquia administrativa das tomadas de decisão que definirá o que deve ser preservado e o que será apagado da história.

A luta é buscar preservar o que é importante para uma determinada comunidade ou lugar e seguir cobrando das autoridades para que a população seja ouvida, senão os interesses econômicos ficarão sempre acima da preservação. É possível conciliar a preservação com a vida pulsante dos grandes centros, incentivando o uso misto das edificações, atualizando as construções para usos mais equilibrados e, dentro da atualidade, otimizando o cotidiano. 

Uma parte significativa dos bens tombados é composta por igrejas católicas, casarões coloniais e edifícios ligados ao poder público. Poucos exemplos da  arquitetura indígena, operária ou vernacular foram reconhecidos. Como equlibrar essa relação? 

Vânia Feitosa: A preservação desse passado colonial está muito ligada ao preconceito das elites com o  que é popular e com a visão daqueles que fizeram parte das primeiras iniciativas oficiais entre 1920 e o final da década de 1930, quando tivemos a criação do Serviço de Proteção Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). 

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Houve uma comitiva integrada por Mário de Andrade, Lucio Costa e outros intelectuais modernistas que tinham uma predileção pela arquitetura colonial, ignorando diversas outras tipologias que contribuíram com nossa história, mas criando uma certa hegemonia do que devia ser mantido em pé e preservado. Era o olhar de valorização da cultura europeia. Com isso, acabamos por perder muita coisa.

Até quando essa linha permaneceu? 

Vânia Feitosa: Ao longo dos anos, temos avançado nesse pensamento de preservação. É claro que ainda há muito a ser revisto, no entanto, nos anos 2000, tivemos o reconhecimento do patrimônio imaterial, por exemplo, que valoriza os saberes e formas de produzir e manifestações culturais, que são transmitidas por gerações, e que devem ser preservadas.

Também tem se discutido sobre a preservação de outras edificações religiosas para além da católica, como terreiros de matriz africana, vilas operárias e até construções industriais. Para melhorar esse entendimento daquilo que deve ser preservado ou mesmo lembrado, mais uma vez enalteço a participação popular, cobrando de nossos governantes um olhar mais descolonizado. 

Falando em participação popular, como a presença (ou ausência) de memória coletiva nos espaços influencia a sensação de pertencimento?

Vânia Feitosa: As memórias são criadas o tempo todo através das gerações. Cada indivíduo é marcado por vivências que o faz sentir parte daquele local. Deixar registradas essas informações para as futuras gerações, não só valoriza os bairros e os lugares, como gera engajamento para futuras ações de divulgação, através de ações culturais e turísticas. 

Gosto de dizer que as histórias precisam ser contadas. É tempo de valorizar as memórias das pessoas que constroem a cidade: trabalhadores, operários, gente como a gente, e não só políticos, fazendeiros, coronéis e ditadores. Já olhou o nome das ruas e viadutos ao redor? A maioria é de homens e políticos, como aceitamos isso acontecer ao longo dos anos? Temos uma séries de iniciativas culturais e educativas acontecendo em nosso País, onde há visitas mediadas em bairros para valorizar e disseminar as histórias das minorias, como mulheres, negros, indígenas. 

Tem algum exemplo que você poderia citar? 

Vânia Feitosa: Vou citar uma ação da qual participei recentemente, no Rio de Janeiro, promovida pelo Instituto Pretos Novos, que criou um roteiro de caminhada contando diversos fatos ocorridos nos bairros da Gamboa e Saúde, sob uma perspectiva afrocentrada. A atividade mergulha nas memórias dos escravizados e hoje recebe centenas de participantes semanalmente.

O que seria, para você, uma política de patrimônio verdadeiramente inclusiva?  O que ela priorizaria? 

Vânia Feitosa: Seria uma política onde a população tivesse mais força de voz para emitir sua opinião e ser ouvida por quem realmente toma a decisão. Além de mais incentivos financeiros para quem contribui com a conversão e manutenção dos patrimônios culturais. 

E olhando adiante: como o patrimônio cultural material pode ser um agente de  transformação social e não apenas de conservação estética? 

Vânia Feitosa: Preservar nosso passado e nossas tradições nos faz revisitar o que já passamos e o que  podemos aprender com isso: um País sem memória continua errando nas mesmas ações. A transformação social ocorre quando conseguimos renovar o olhar e refletir sobre nosso papel no lugar que habitamos. Afinal, não são apenas prédios, mas, sim, uma imensidão de histórias de pessoas que construíram essa nação.

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