Conhecimento do povo é prioridade para cidades mais resilientes, dizem pesquisadores IPEA

Especialistas do IPEA Gustavo Luedemann e Renato Balbim comentam relatório internacional que propõe nova abordagem para enfrentar os impactos da crise climática nas cidades.

Por Paula Maria Prado em 28 de abril de 2025 15 minutos de leitura

resiliência climática
Foto: Alex Linch/ Shutterstock

A resiliência climática deve ser o novo alicerce das cidades, orientando políticas públicas, planejamento urbano e investimentos em todo o mundo. Essa é uma das conclusões do relatório do Climate Crisis Advisory Group (CCAG), que ganha ainda mais relevância diante da realidade global onde milhões de pessoas vivem em áreas vulneráveis aos impactos da crise climática. Com base em três frentes – pessoas e meios de subsistência; economia e custos; e cadeias de abastecimento – o relatório propõe diretrizes para tornar as cidades mais resilientes e com emissões líquidas zero. Isso, no entanto, depende de financiamento e de uma mudança de mentalidade: atualmente, a maior parte dos investimentos ainda é direcionada a setores de alto carbono.

Para virar esse jogo será preciso integrar governos, iniciativa privada e sociedade em torno de objetivos comuns, como transporte sustentável, códigos de construção mais exigentes e inclusão social. O desafio é grande — mas, segundo o CCAG, as cidades têm o poder de mudar o destino do planeta, como mostram em entrevista ao Habitability Gustavo Luedemann, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), membro do CCAG, e Renato Balbim, pesquisador da coordenação de desenvolvimento urbano do IPEA.

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O relatório do CCAG enfatiza a necessidade de resiliência climática como princípio orientador no desenvolvimento urbano. O que se entende pelo conceito?

Gustavo Luedemann, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), membro do CCAG. (Foto: Arquivo pessoal)

Gustavo Luedemann: O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) define resiliência como a capacidade de sistemas sociais, econômicos e ambientais de responder ou se reorganizar, mantendo sua função primordial, sua identidade e estrutura, após passar por eventos perigosos, tendências ou distúrbios, mantendo também sua capacidade de adaptação, aprendizado e transformação. Não há dúvida de que, tendo em vista os riscos de eventos extremos como os vistos nas cidades gaúchas durante as cheias do Guaíba ou dos vilarejos que ficaram isolados na Amazônia nas fortes secas em dois anos consecutivos, precisamos organizar nossos sistemas urbanos para resgatar suas funcionalidades após eventos como estes e minimizar os danos às pessoas que sofrem ainda muito tempo depois do evento ocorrido, muitas vezes tendo perdido seu sustento, tendo sua saúde, inclusive psíquica, abalada.

Como essa busca pela resiliência tem se dado nas cidades?

Gustavo Luedemann: Nós temos um Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, que já é um esforço coordenado dos entes federados, mas que precisa ser devidamente valorizado e equipado para os cenários infelizmente pouco favoráveis que vêm se realizando em grande parte pela incapacidade da comunidade internacional em colaborar para uma efetiva redução das emissões de gases de efeito estufa. Além da Defesa Civil, precisamos criar uma cultura de reação aos desastres, educando desde as crianças sobre o que fazer em casos de alagamentos, deslizamentos, secas e calor extremo.

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Essas ações de resiliência são o bastante para o cenário que se desdobra?

Gustavo Luedemann: Resiliência é fundamental, mas não suficiente. Precisamos direcionar o desenvolvimento das cidades para a redução das emissões da mobilidade e da logística, ter redes inteligentes e reduzir o consumo de energia das edificações públicas, comerciais, industriais e das moradias. Precisamos de uma construção civil que leve em conta os riscos climáticos e produza cidades adaptadas a um futuro com eventos extremos mais frequentes e, ao mesmo tempo, que a construção e manutenção de edificações, a indústria de aço e cimento tenham menor impacto climático. Devemos ainda recuperar edificações sempre que possível para evitar as emissões de novas construções e precisamos de uma racionalidade social e ambiental da ocupação do solo urbano, que dê o direito à cidade a todos ao mesmo tempo, que reduza os deslocamentos e evite que se habite áreas de risco e áreas de forte interesse ecológico.

É uma realidade complexa e multifatorial, portanto.

Renato Baldim, pesquisador da coordenação de desenvolvimento urbano do IPEA. (Foto: Arquivo pessoal)

Renato Balbim: As cidades brasileiras encontram-se no epicentro de uma crise socioambiental, onde as mudanças climáticas amplificam desigualdades históricas e estruturais. Eventos extremos, como as fortes chuvas que assolaram o Recife, em 2022; São Sebastião, em São Paulo, em 2023; a seca histórica da bacia do rio Amazonas e as ondas de calor cada vez mais frequentes (já foram cinco no sudeste apenas em dois meses de 2025), demonstram que os impactos ambientais não se distribuem de forma equitativa. Pelo contrário, atingem de maneira desproporcional populações historicamente segregadas, excluídas, aprofundando ainda mais os impactos da falta de infraestruturas adequadas. Uma onda de calor em um bairro arborizado não é a mesma que em uma periferia. A noção de direito à cidade assume um papel central na busca por justiça ambiental e adaptação urbana.

Como deve ser essa busca?

Renato Balbim: As lógicas de produção das cidades devem ser repensadas estruturalmente para garantir que estratégias de mitigação e adaptação climática não reproduzam padrões excludentes de desenvolvimento. Não é simplesmente pensar nessas estratégias, mas pensar com uma lógica que inverta o sinal do modelo excludente de urbanização. No Brasil, a segregação socioespacial historicamente exclui dos processos decisórios e do acesso equitativo à terra e aos recursos urbanos (ou melhores condições de infraestrutura) uma parcela da população, que essencialmente é preta. Isso está ligado ao escravismo e ao impedimento dos libertos em acessar à terra. Atualmente, se dá o nome de racismo ambiental, que novamente recai sobre os mais pobres, periféricos e, em sua maior parte, pretos. Assim, a formulação de políticas públicas voltadas para a resiliência climática deve estar necessariamente atrelada à superação das desigualdades étnico-raciais, territoriais e socioeconômicas.

As mudanças climáticas estão intensificando riscos como inundações, secas e penetração da terra no Brasil. Quais medidas imediatas as cidades devem adotar para mitigar esses impactos?

resiliência climática
Foto: mkfilm/ Shutterstock

Gustavo Luedemann: As medidas de adaptação a essa realidade variam de acordo com cada caso. Importantíssimo é sabermos avaliar cada tipo de risco e se ter uma ideia do mapa de vulnerabilidades em cada município. Até pouco tempo, os modelos que geravam mapas regionais mais detalhados de cenários climáticos divergiam muito e os sinais dados pelos cenários resultantes desses modelos eram frequentemente contraditórios (cenários que previam apenas riscos de seca ou apenas riscos relacionados à maior pluviosidade em um mesmo local num mesmo cenário futuro, por exemplo). Hoje, isso melhorou muito e a existência de cenários confiáveis juntamente com a organização de diversos dados relacionados à mudança do clima e suas consequências possibilita aos gestores municipais entenderem melhor os riscos a que suas jurisdições estão expostas e permite uma ação no sentido de diminuir a exposição das pessoas e bens ao possível dano. Falo especificamente do sistema “Adapta Brasil”, mantido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), que permite a visualização desses dados espacialmente.

Renato Balbim: Adaptar as cidades brasileiras à crise climática não é apenas uma necessidade ambiental, mas é, sobretudo, uma questão de equidade e justiça social. O direito à cidade sustentável e inclusiva deve ser perseguido como um direito humano fundamental à existência. A construção de um futuro urbano mais justo ou, ao menos, não tão profundamente injusto, exige ação imediata, engajamento político de diversas forças sociais para que se promova uma transformação estrutural nas políticas públicas. Ou seja, a adaptação só acontecerá de fato se for para todos. Isso significa inventar um novo modelo de desenvolvimento urbano que reconheça de princípio a insustentabilidade do desenvolvimento urbano sustentável, algo que precisei melhor no livro “Sustentabilidade: Mito ou Metas” (2024).

O que pode ser feito a curto prazo?

Renato Balbim: De maneira imediata, deve-se adotar medidas de mitigação dos impactos dessas transformações. Para além de todas as medidas que já são amplamente divulgadas e que, de maneira geral, se assemelham, as cidades brasileiras necessitam e podem transformar rapidamente alguns dos seus investimentos e assim mitigar esses impactos. Falo especificamente da produção do espaço da habitação. Nossas cidades continuam crescendo, sobretudo em suas periferias pobres. Precisamos rapidamente transformar nossos programas habitacionais. O déficit habitacional se encontra concentrado em uma população muito pobre, que, ao contrário do que se pensa, não está sem casa. Está morando em algum tipo de casa com inadequações, precariedades, dividindo com outros núcleos familiares ou pagando mais do que 30% dos seus rendimentos em aluguel. Essa é a composição do déficit habitacional.

Como deveriam ser configuradas as ações diante deste cenário, em sua opinião?

Renato Balbim: Como política mitigadora imediata deveríamos passar a investir a maior parte dos recursos públicos da habitação naquilo que chamamos de “Melhorias Habitacionais”, ações que visam superar essas inadequações, precariedades e falta de espaço a partir da qualificação do estoque construído. São 14,5 milhões de moradias nessa situação, 40% de todo o estoque imobiliário existente. Ou seja, atualmente não é apenas refazer o telhado de uma casa para que não exista umidade ou abrir janelas pensando na ventilação que combate doenças. Precisa-se fazer essas melhorias pensando nos materiais mais adaptados para as ondas de calor e assim por diante. Para se ter uma noção de como é possível fazer, segundo cálculos que fiz no IPEA, desde 2009, o Estado brasileiro subsidiou o programa MCMV (Minha Casa, Minha Vida) em R$ 228 bilhões, isso para construir 5 milhões de novas moradias seguindo o mesmo modelo que resulta nas atuais transformações climáticas. Para superar as inadequações habitacionais de 14,5 milhões de famílias, os subsídios seriam da ordem de R$ 150 bilhões, isso com óbvios benefícios associados ao não consumo de novos espaços, a qualificação das áreas já construídas etc. Além disso, essas mesmas políticas podem e devem ser utilizadas para ajudar a colocar no mercado imóveis vazios que, em algumas cidades, superam 20% do estoque imobiliário: um desperdício absurdo de energia, espaço e aprofundamento do modelo de exclusão e segregação. Não defendo que se pare de construir novas unidades habitacionais subsidiadas, há milhares de famílias pobres que necessitam dessas casas, outras mais que serão deslocadas por eventos extremos. Mas precisamos também passar a investir na qualificação e requalificação do estoque construído.

O relatório destaca que, até 2030, eventos climáticos extremos podem levar até 3 milhões de brasileiros à pobreza extrema. Quais políticas públicas, no seu ponto de vista, seriam mais eficazes para evitar esse cenário?

Gustavo Luedemann: Precisamos mudar nossa economia no sentido de ter uma sociedade menos dependente de combustíveis fósseis – o Brasil já é pioneiro na bioeconomia, mas o futuro exigirá um descolamento muito maior dos fósseis – ao mesmo tempo que haja uma ação no sentido de adaptar suas cidades, que é onde se encontra quase a totalidade da população, deixando as pessoas menos vulneráveis. Se conseguirmos essa transformação tendo como princípio o direito ao trabalho decente, a escuta das comunidades que sofrerão intervenções para que as melhorias de fato as atendam e o direito à cidade, evitaremos esse cenário.

O documento aponta que cidades antigas e novas enfrentam desafios climáticos distintos. Como as cidades brasileiras podem equilibrar a preservação da infraestrutura existente e a construção de novas soluções resilientes?

Gustavo Luedemann: Essa é uma pergunta que precisa ser respondida caso a caso. Temos cidades com infraestrutura e construções históricas que podem ser afetadas pelo aumento da força das ondas, o avanço do mar e da erosão marinha. E temos cidades que já sofreram alagamento e perdas de patrimônio histórico por conta de uma maior intensidade de chuvas no meio do continente. Por um lado, muitas construções seculares não estão adaptadas à nova realidade e, por outro, os materiais usados antigamente são fonte de estudo para soluções de construção com materiais menos emissores e, a depender do caso, capaz de fornecer maior conforto térmico do que a construção convencional. Algumas infraestruturas viárias são facilmente adaptáveis a soluções de transporte público eletrificado, outras precisam ser revistas porque foram mal dimensionadas e geram engarrafamentos e maior emissão por km e passageiro do que o necessário e precisam ser substituídas. A regra é: precisa gastar menos energia, emitir menos, proteger mais as pessoas e possibilitar o rápido resgate em caso de desastre, inclusive oferecendo abrigo ao calor intenso, que põe em risco a vida, especialmente, de idosos, bebês e pessoas doentes.

Renato Balbim: Essa regra de ouro, se levada a cabo, transforma no sentido correto qualquer planejamento de infraestrutura urbana. Para além disso, insisto, deveríamos viabilizar investimentos em assistência técnica – de engenheiros, arquitetos, agrônomos, geógrafos etc. – para que as comunidades possam elaborar e implementar as medidas de mitigação necessárias. O tempo corre rápido demais nesse sentido e as soluções baseadas nas grandes intervenções de engenharia, diversas ainda necessárias, têm tempo de maturação e implementação longos. E, novamente, esse modelo de desenvolvimento já se mostrou absolutamente insustentável.

Mas como garantir que as políticas adotadas hoje tenham continuidade ao longo dos anos?

Gustavo Luedemann: Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Acredito que os documentos de planejamento, Planos Diretores e outros precisam ter a obrigatoriedade de mencionar a destinação dos espaços e as ações de adaptação e mitigação contidas nos documentos, de maneira a comprometer com responsabilidade jurídica objetiva os gestores. Alterações nos planos deverão explicar como melhoram a segurança da população e, caso se verifique o contrário, que se cobre judicialmente que as ações pertinentes no planejamento sejam preservadas ou que mudanças que melhor se adequem à evolução da mudança do clima sejam inseridas de maneira vinculante nos documentos, ao mesmo tempo que a execução do planejamento vincule os gestores à responsabilidade de não executá-lo. Caso contrário, o ciclo político de quatro anos impedirá as ações de longo prazo.

Renato Balbim: Sem dúvida deve haver uma maior responsabilização dos políticos e gestores quanto àquilo que é planejado, sobretudo aquilo que é planejado de maneira participativa, que representa a efetiva vontade popular. O planejamento urbano, que ao contrário do que se comumente fala, sempre existiu nas cidades brasileiras, mas existiu apenas para uma parcela da cidade e para que a maior parte da população não fizesse parte dos benefícios da urbanização, só será efetivo quando representar a vontade da população. Ou seja, o poder de aplicação do planejamento urbano vem da participação da sociedade. No caso brasileiro essa sociedade é em sua maioria absolutamente excluída da noção de direitos e uma outra parte entende direitos como privilégios!

Então, como envolver a sociedade no desenvolvimento de cidades mais preparadas para os desafios climáticos?

Gustavo Luedemann: Da mesma maneira como qualquer intervenção nas cidades deve envolver os afetados por ela. Uma peculiaridade é que a base da ciência do clima, já conteúdo das escolas, precisa ser mais bem pensado no ensino médio, em especial, para garantir a participação informada.

Renato Balbim: Há que se implementar políticas simples, de baixo custo relativo, que fique claro, de assistência técnica de todas as formas, em todos os temas, viabilizando assim que o conhecimento científico formal esteja associado ao conhecimento tradicional, local ou coletivo, e que essa associação responda às necessidades de cada grupo populacional, inovando, permitindo políticas adaptadas.
O estado não tem como promover uma mudança estrutural que não seja a partir de sua associação com grupos diferentes daqueles que sempre esteve associado. Para tanto, não é necessária uma revolução. Levar conhecimento à sociedade é garantia para a melhoria da qualidade de vida.

Sobre financiamento e investimentos, o relatório menciona que a lacuna de financiamento climático ultrapassa US$ 630 bilhões por ano. Quais as maiores barreiras para aumentar os investimentos privados em infraestrutura resiliente?

Gustavo Luedemann: O investimento privado vem com mudanças no ambiente de negócios. Se não for permitido construir de maneira emissora, pouco resiliente e sem segurança térmica, contra alagamento e deslizamento, todo o recurso investido na construção civil será direcionado à questão climática. Também será necessário muito investimento público para a infraestrutura e a grande expectativa está sobre os países ricos, doadores de fundos como os Fundos de Investimento para o Clima (CIF) e, principalmente, o Fundo Verde para o Clima (GCF). Muitos programas de troca de iluminação pública por LED, por exemplo, já foram financiados com recursos do GCF operados pela Caixa. Como historicamente os países ricos não têm cumprido suas obrigações integralmente sob a Convenção do Clima, precisamos aumentar os recursos próprios para financiar essa transformação da economia. O Ministério da Fazenda já lançou títulos soberanos verdes para gerar recursos de investimento para o Fundo Clima e está criando uma “taxonomia” para dar um selo estatal para investimentos sustentáveis, entre outras ações, sob o Plano de Transformação Ecológica. O mais importante, todavia, é a regulação. Essa transformação somente ocorrerá com os incentivos corretos e limites impostos.

Hoje, grande parte dos investimentos privados ainda flui para ativos com alto teor de carbono. Como mudar esse cenário?

Gustavo Luedemann: Colocando um preço para as emissões, por exemplo. As soluções nesse sentido podem ser um imposto por emissão ou, mais comumente, inclusive tendo seu marco legal já aprovado no Brasil, através de um teto de emissões, com comércio de permissões emitidas na medida do teto, onde quem reduz mais acaba tendo mais permissões para vender ou tem menos necessidade de obtê-las. Isso é chamado de Mercado de Carbono. Todavia, algumas áreas não são sensíveis a um pequeno preço para as emissões frente ao enorme investimento necessário para reduzi-las. Outras formas restritivas e planejadas podem ser adotadas. No setor elétrico, por exemplo, por ser altamente regulado,
pode-se simplesmente optar por não contratar energia fóssil. E, como dito acima, regulação é fundamental.

No Brasil, há incentivos suficientes para que o setor privado invista em cidades resilientes e de baixa emissão de carbono? O que precisa ser aprimorado?

Gustavo Luedemann: Acredito que ainda estamos aprendendo o que pode tornar as nossas cidades resilientes, adaptadas e de baixa emissão. O conhecimento gerado com instrumentos como o Adapta Brasil, as experiências com programas, como Pluviômetro nas Cidades, os alarmes, os avisos por celular… Tudo é muito novo. Estamos digerindo essas experiências e ainda não temos muitas estratégias decantadas capazes de inspirar incentivos. Para reduzir emissões, temos as estratégias gerais mencionadas, como a precificação de carbono. Mas, mesmo isso depende de monitorarmos as emissões dos agentes e ainda não cumprimos essa etapa.

Renato Balbim: Não, absolutamente não existem incentivos suficientes. Mas novamente, não existiriam jamais incentivos suficientes se entendermos que o setor privado a ser fomentado é apenas esse mesmo setor que produziu cidades altamente excludentes e segregadoras. Há que se prover incentivos para a expansão do setor privado e inclusão de cooperativas, associações, entidades e todos os tipos de organizações da sociedade civil na busca de soluções.

O relatório destaca a necessidade de melhor coordenação entre governos, financiadores e sociedade. Como superar os desalinhamentos de interesses para que o enfrentamento da crise climática seja mais eficiente e integrado?

Gustavo Luedemann: A mudança do clima até pouco tempo atrás era vista com muita desconfiança. Campanhas de desinformação conseguiram eficazmente espalhar a ideia de que não havia consenso científico sobre o tema. Apenas recentemente – e pelo pior motivo –, acompanhamos o sofrimento de pessoas vitimadas por eventos climáticos sem precedentes em diferentes partes do País e do mundo. Isso fez com que o público ficasse mais atento ao problema. Acredito que estamos entrando, ainda que tardiamente, em uma fase mais propícia para que sejam eleitos representantes políticos comprometidos com a pauta ambiental, que haja pressão política por ações, que o conjunto da sociedade pactue regras mais rígidas em relação às emissões e que haja apoio popular para os investimentos em infraestrutura de adaptação. Mas, tanto no Brasil como no resto do mundo, os políticos negacionistas ainda estão latentes, o lobby da exploração de fontes fósseis ainda é poderoso e precisamos investir em educação sobre meio ambiente e mudança do clima em específico para evitar um retrocesso.

Renato Balbim: No caso do desenvolvimento urbano, no Brasil, temos uma situação bastante complexa em relação ao resto do mundo no que diz respeito à coordenação de políticas. Por ser o Brasil um país federado, composto por três entes, em que o município tem autonomia quanto a política de uso e regulação do solo, a coordenação é extremamente complexa. São 5.570 municípios com legislações que regulam a produção do espaço, o território, de forma díspar. Avalio que chegará o tempo de haver uma certa centralização das políticas para o enfrentamento da crise climática. Meu argumento, que creio, será cada vez mais utilizado, é que a gestão de um problema de escala nacional não tenha como ocorrer de maneira absolutamente pulverizada. Um rio nacional, por exemplo, é gerido segundo políticas nacionais, estaduais e, por vezes, municipais. Mas, a coordenação dessas ações se dá na bacia hidrográfica como um todo ou, ao menos, é o que a legislação diz. Com a crise climática, cada vez mais seremos levados a olhar diferentes escalas da política.

Quais exemplos internacionais poderiam servir de inspiração para o Brasil?

Gustavo Luedemann: O Brasil tem uma diversidade muito grande de situações urbanas. Para cidades mais espraiadas, soluções encontradas em cidades europeias adensadas podem não se aplicar, por exemplo. Há toda a questão de onde se encontra a cidade, qual solo clima, relevo e quais alterações climáticas são esperadas naquela coordenada geográfica. De maneira geral, as ideias de humanizar as cidades substituindo asfalto por jardim, como já foi proposto em Barcelona, desde que haja melhoria no transporte público e nas possibilidades de transitar de bicicleta e a pé auxiliam no clima local, melhoram a drenagem devido à maior percolação da água onde isso não era possível devido ao asfalto etc. Algumas cidades chinesas mostram possibilidades de, mesmo com alta densidade demográfica, ter uma boa drenagem, mantendo não apenas áreas verdes em pontos estratégicos, mas, também, com muita engenharia de drenagem (Conheça os jardins flutuantes).

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Por outro lado, Cidade do Cabo é muito citada por seus esforços de conservação da água e obtenção de água de fontes alternativas, ações importantes para se enfrentar possíveis eventos de escassez hídrica. Normas de construção usadas em Copenhagen e Tóquio podem ser exemplos a serem usados em centros urbanos onde se concentram grandes empresas, mas seus custos de transação podem virtualmente não ser suportados em cidades médias e nas partes menos valorizadas do perímetro urbano.

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As culturas tradicionais e os saberes ancestrais também podem ser fontes de inspiração?

Gustavo Luedemann: O relatório do CCAG cita como cidades distintas no mundo enfrentam de maneira diferentes questões climáticas semelhantes. Mas acredito que antes de procurarmos soluções longe, precisamos aprender as soluções já testadas localmente por populações indígenas e tradicionais que habitavam a mesma região. Muito conhecimento é perdido e soluções baseadas na natureza já foram experimentadas na prática pelos antigos moradores do que hoje são as nossas cidades.

Renato Balbim: Mais do que pensar em exemplos internacionais, devemos e temos totais condições de pensar as soluções adaptadas ao modelo de cidade que temos no Brasil, incluindo na solução mais da metade da cidade construída que jamais teve acesso a nenhum tipo de assessoria técnica, conhecimento científico formal e que, ainda assim, se reinventa a cada dia e vem secularmente resistindo e sobrevivendo. O que devemos fazer é olhar mais os exemplos do Brasil de verdade, do Brasil profundo, do Brasil periférico. E tenham certeza, quando fizermos isso seremos exemplo para inúmeros povos do chamado Sul Global, da América Latina, da África e parte da Ásia.

Quais são as principais prioridades para tornar as cidades brasileiras mais habitáveis e sustentáveis nas próximas décadas?

Gustavo Luedemann: Conhecimento! Precisamos gerar novos conhecimentos, divulgá-los e debatê-los. As soluções estão sendo geradas e a gestão do conhecimento é fundamental para a rápida difusão das melhores soluções e para ligarmos problemas às possíveis soluções. Ciência, tecnologia, difusão e educação. Cada cidade tem suas particularidades do passado, do presente e do futuro. Precisamos aprendê-las e aplicar soluções customizadas. Foros como a Câmara Técnica de Desenvolvimento Econômico Sustentável e Mudança do Clima no Conselho da Federação e iniciativas, como o programa “Cidades Verdes Resilientes”, são importantes pontos de partida. Mas as soluções precisam passar por foros locais com participação informada, com troca de experiências, um aprendizado mútuo entre os participantes.

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Daí a importância do pouco falado Artigo 6 da Convenção de Clima, que trata de educação para a mudança do clima, treinamento e conscientização pública. A adaptação das cidades ocorre na ponta, o
conhecimento sobre a questão climática ajuda as pessoas a reconhecerem suas vulnerabilidades e as mudanças precisam de pressão da opinião pública e da aceitação das comunidades de intervenções no território destas pelo poder público para tratar de reformar o que é insuficiente para garantir a segurança e a qualidade de vida num futuro com incertezas e eventos extremos.

Renato Balbim: Sim, conhecimento que emana das classes populares. Conhecimento que representa a inventividade do nosso povo. A pobreza nos ensina muito em relação à reciclagem, por exemplo. Com conhecimento científico formal associado, que valorize o conhecimento popular, podemos transformar radicalmente as cidades, a menor custo, com maior justiça social e baseado em inovações que servirão para o mundo como um todo.

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