Desigualdade social agrava consequências das ondas de calor
Pretos, pardos e pessoas de menor poder aquisitivo são mais suscetíveis às mortes relacionadas às altas temperaturas.
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Marcus Lopes em 21 de fevereiro de 2024 5minutos de leitura
Em menos de 20 anos, o excesso de calor matou quase 50 mil pessoas no Brasil. É como se a população inteira da cidade histórica de Diamantina, em Minas Gerais, morresse por causa de doenças relacionadas às fortes ondas de calor, semelhantes às que têm sido verificadas com frequência cada vez maior, em diversas regiões. Para se ter uma ideia, as altas temperaturas mataram cerca de 20 vezes mais do que os deslizamentos de terra, no mesmo período, no país.
As conclusões são de um estudo elaborado por uma equipe formada por membros da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade de Lisboa. O trabalho, publicado no final de janeiro deste ano na revista científica norte-americana Plos One, relaciona os efeitos das ondas de calor a milhares de óbitos entre a população, entre os anos 2000 e 2018.
Os pesquisadores analisaram as taxas de mortalidade, no período analisado, nas 14 regiões metropolitanas mais populosas do país e que concentram mais de 74 milhões de moradores – 35% do total da população brasileira. Os acadêmicos também constataram que o Brasil enfrentou entre 3 e 11 fortes ondas de calor, por ano, a partir de 2010. Em décadas anteriores, os dias seguidos de temperaturas escaldantes não chegavam a três por ano, em média.
A análise dos dados revela que, nesses 18 anos, um total de 48.075 pessoas morreram de doenças relacionadas ou agravadas pelo forte calor, incluindo complicações cardiovasculares, do aparelho respiratório, estresse térmico, câncer e outras enfermidades que podem ser fatais. Além disso, foi demonstrado que a exposição ao calor excessivo tem o potencial de agravar comorbidades em portadores de doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson.
“Isso é um reflexo do aquecimento global e das mudanças climáticas. As ondas de calor ainda são um desastre negligenciado no nosso país, pois as pessoas ainda acham que o calor não mata”, explica a professora da UFRJ e uma das autoras da pesquisa, Renata Libonati. Segundo ela, embora o índice de mortes por questões térmicas seja 20 vezes superior aos provocados por desastres relacionados aos deslizamentos de terra, faltam protocolos e ações efetivas para o combate aos efeitos na saúde das pessoas, por causa das altas temperaturas. “Essa negligência ocorre porque as ondas de calor não têm um impacto visual imediato, como um desmoronamento, uma grande seca ou uma enchente, por exemplo”, explica Renata, que também é pesquisadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da UFRJ.
As regiões metropolitanas com maiores taxas médias de mortes, considerando o período total entre 2000 e 2018, foram o Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belém, Cuiabá e Recife. Porém, se forem levados em consideração apenas os últimos cinco anos da pesquisa (2014-2018), as áreas metropolitanas do Recife, Belém, Porto Alegre, Cuiabá e São Paulo aparecem como as mais impactadas.
Ondas de calor têm vítimas em comum
O estudo também mostra que as populações que mais sofrem são os idosos, mulheres, pessoas pretas, pardas e com menores índices de escolaridade e renda. No caso dos idosos e das mulheres, as explicações são fisiológicas e relacionadas à resistência dos organismos ao calor e agravamento de comorbidades já existentes.
Em relação aos demais grupos mais vulneráveis, a explicação é econômica e mostra como a desigualdade social se reflete até nas questões climáticas. São pessoas que geralmente moram em regiões mais distantes, com menos áreas verdes e habitações menores e com muitos moradores, além de pouco adaptadas ao calor e com problemas de ventilação.
Trata-se também de pessoas que normalmente trabalham a céu aberto e utilizam mais o transporte coletivo, que normalmente é desprovido de atenuantes como sistemas de ar condicionado.
“Os resultados revelam como as desigualdades sociais, de gênero e o racismo estrutural no nosso país multiplicam os impactos das mudanças climáticas, exacerbando ainda mais essas desigualdades”, explica o pesquisador da UFRJ Djacinto Monteiro dos Santos, que integra o grupo da pesquisa. “Os grupos identificados como os mais vulneráveis são também aqueles que vivem na periferia das grandes cidades, com pouca disponibilidade de áreas verdes, condições precárias de moradia, enfrentam mais tempo no transporte público, trabalham ao ar livre, têm dificuldade de acesso ao serviço de saúde e recursos limitados de adaptação”, completa Monteiro dos Santos.
Diante disso, as cidades, em especial as metrópoles, devem se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas e a maior ocorrência de eventos extremos, como as ondas de calor. “Essas ondas de calor não vão diminuir de intensidade, por causa do aquecimento global. Precisamos mitigar os efeitos desses eventos extremos e nos adaptar. As grandes cidades sofrem muito com os efeitos, como a formação das ilhas de calor”, diz a professora da UFRJ, que defende a adoção de protocolos para enfrentamento e mitigação dos efeitos nocivos do clima extremo na saúde das pessoas.
Entre as medidas necessárias, estão a criação de mais áreas verdes à disposição da população, mesmo em áreas pequenas, e alteração nas regras de construção civil, para que as novas construções sejam projetadas de modo a oferecerem maior conforto térmico aos moradores. “Devem ser utilizados materiais de construção que afastem o calor em vez de absorvê-lo, além de garantir a boa circulação de ar nos cômodos”, cita Renata Libonati.
No dia a dia da população também é preciso garantir a retaguarda para evitar problemas com calor excessivo. O sistema público de saúde, explica Renata, deve ter mais médicos preparados para lidar com a questão climática e a população deve sempre ser alertada com a antecedência da chegada das intempéries.
A distribuição gratuita de água mineral à população em pontos estratégicos também deve ser uma rotina nos dias muito quentes. Em grandes eventos, como shows musicais e partidas de futebol, também deve haver esquemas especiais de distribuição gratuita de água e campanhas de incentivo à hidratação.
“Também pode haver uma permissão para que as pessoas entrem nos eventos com as suas garrafas plásticas de água, por exemplo”, cita Renata, que lembra a estudante Ana Clara Benevides Machado, que morreu após passar mal em um show da cantora Taylor Swift, no Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado. A morte da estudante, conforme laudo de necropsia, foi provocada por exaustão térmica. Na ocasião, a cidade enfrentava uma forte onda de calor, com temperaturas superiores a 40°C e sensação térmica de quase 60°C em algumas regiões. “Por conta do aquecimento global, as ondas de calor serão cada vez mais frequentes e duradouras. Nosso sistema de saúde precisa ser adaptado e estar preparado para mitigar os efeitos no organismo das pessoas”, conclui a autora da pesquisa.
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