Pauta da moda, IA já é usada há mais de 10 anos na arquitetura, mas segue evoluindo (e surpreendendo), tendo participação em projetos icônicos, como o prédio mais alto e a maior estrutura suspensa do mundo.
O ano de 2023 ficou marcado como o ano da Inteligência Artificial. A palavra ChatGPT fez parte do termo mais buscado no ano pelos internautas brasileiros no Google. O tema também foi pauta recorrente em importantes eventos internacionais como a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 28), tanto pelo lado dos possíveis impactos positivos, quanto negativos. Na arquitetura, no entanto, escritórios e profissionais no Brasil e no mundo utilizam ferramentas de IA – e não é de hoje. “A inteligência artificial na arquitetura já é usada há bastante tempo, por meio de programas cujo funcionamento tem a participação da IA”, comenta o arquiteto Alexandre Panizza, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Ele atua na área de informática aplicada à arquitetura em seus projetos, consultorias e aulas. “Mas são ferramentas bastante técnicas – por isso é preciso estar envolvido e muito bem formado no assunto para conseguir interagir com elas”, ressalta.
Panizza menciona prédios projetados há mais de 10 anos com uso de inteligência artificial. Entre eles está um dos maiores símbolos da engenharia global: o edifício Burj Khalifa, o mais alto do mundo. Com 828 metros de altura, ele fica em Dubai e foi entregue em 2010 pelo escritório Skidmore, Owings & Merrill. Entre outras edificações icônicas projetadas com ajuda da IA e inauguradas na última década estão a Biblioteca Nacional de Sejong City, na Coreia do Sul (2013), e o Centro Cultural Heydar Aliyev, no Azerbaijão (2013). Mais recentemente tem-se o edifício Lè Architecture, em Taiwan (2017); a Sede do Banco Nacional do Kuwait (2022).
Em fevereiro deste ano foi lançado o One Za’abeel, em Dubai. Composto por duas torres, ele tem escritórios, restaurantes, salas comerciais e hotel. O ponto de conexão entre as torres consiste em uma ponte fechada (uma espécie de túnel) de 230 metros de comprimento, a 100 metros do solo. E o mais surpreendente (a apavorante para alguns!): ele tem um “balanço” de 66 metros, o maior do mundo. Isso quer dizer que uma de suas extremidades fica suspensa no ar, sem apoio de pilares ou colunas. É como se o “túnel” estivesse suspenso no ar! A solução – desafiadora para a arquitetura e a engenharia – costuma dar um ar arrojado às construções e é muito utilizada na criação de marquises e sacadas. No caso do One Za’abeel, ela dá aos visitantes a sensação de flutuar enquanto apreciam vistas panorâmicas de Dubai. Por ser a maior estrutura em balanço do mundo, a ponte até recebeu um nome próprio: “The Link”.
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Assim como Panizza, a arquiteta e designer computacional Marcella Carone enfatiza que não é novidade a arquitetura usar inteligência artificial. “IA é um termo que existe há muitos anos, mas mudou muito do que era antes para o que é agora. Recentemente isso foi sendo colocado na mídia, o que criou uma euforia enorme nas pessoas a curto prazo. Acho muito mais importante pensar mais no longo prazo do que no curto”, avalia a arquiteta, que é professora no programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e tem um escritório focado em design computacional, desenvolvimento de projetos arquitetônicos e viabilidade legal para empreendimentos.
Panizza também chama a atenção para a questão midiática. “A inteligência artificial virou moda, como tudo nesse mundo. Explodiu na mídia a partir do ChatGPT, que é rápido, traz muitas informações, mas tem superficialidade”, afirma ele, que instalou o ChatGPT para fazer testes. O arquiteto simulou, no chatbot, um projeto de três páginas que ficou pronto em minutos. “Ajuda como apoio para a parte inicial do trabalho. Mas, na arquitetura – assim como nas outras áreas – não dá para publicar do jeito que está, utilizar diretamente, porque é conteúdo sem personalidade e fica complicado eticamente. Na arquitetura também ocorre o problema de como usar ChatGPT em trabalhos autorais. Facilita, mas tem a responsabilidade profissional, o limite ético do trabalho”, alerta o arquiteto.
Marcella comenta que a IA se desenvolve a partir de uma curva exponencial, não linear, “o que significa, na prática, que a gente está com essas tecnologias acontecendo muito mais rapidamente para nós”. Ela lembra o advento do Autocad na década de 1980 e outros marcos, como o uso de computador nos projetos de arquitetura. “Depois dos anos 2000 a gente vê um processo muito mais rápido, seja de uso – na arquitetura – de imagens renderizadas, de parametria, de algoritmos, culminando agora no que a gente está falando mais, que é inteligência artificial”.
Evolução da tecnologia na arquitetura ao longo do tempo (Foto: Marcella Carone)
A arquiteta reforça que a IA está consolidada nos dias de hoje. “Quando usamos o celular e recorremos ao Google, os aparelhos que usamos são treinados com IA. Isso já está na nossa vida. Importante saber que IA não é um robô, um humanoide; estamos falando de um algoritmo”.
“O uso dessas ferramentas pela arquitetura não anulam – não devem anular – o que somos como arquitetos, mas amplificar nossos poderes. Eu brinco que temos superpoderes com IA e nos tornamos uma espécie de arquiteto biônico. Conseguimos trabalhar de uma forma muito mais efetiva”, diz Marcella.
Em um escritório de arquitetura, IA costuma ser usada para duas finalidades. A primeira é criar, estimular e expandir ideias. Para a arquiteta, que trabalha com edifícios de uso misto e estudos de viabilidade, esse tipo de tecnologia é bem-vindo para combinar informações de uma vez só e gerar cenários mais rapidamente, eliminando caminhos logo no começo. “Estão aparecendo muitos aplicativos, como o Space Maker, para primeiras fases de projetos”, exemplifica. “Pode melhorar processos se usado de forma correta, mas isso ainda é experimental em alguns momentos, principalmente quanto à criatividade”.
Marcella cita a utilização de IA para testar ideias e referências na arquitetura. Exemplo: pegar parte da modelagem de um projeto e mesclar com uma referência para gerar uma outra referência, mais específica, para determinado projeto. Com isso, o cliente pode entender melhor a proposta do arquiteto.
A vantagem junto ao cliente também é destacada por Renata Coradin, arquiteta, urbanista e pesquisadora, responsável pelo escritório Casa Cidade Arquitetura e Urbanismo (São Paulo/SP) e professora da Universidade Mackenzie. “É muito interessante a contribuição que a IA oferece quanto à comunicação com clientes, tornando os projetos arquitetônicos mais fáceis de visualizar, compreender e até experimentar, como nos casos em que, através da realidade virtual, se pode ter a experiência de ´entrar´ nos espaços projetados”.
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Para Renata, IA possibilita a expansão da capacidade criativa sem comprometer a originalidade e a humanização dos resultados, sendo, portanto, uma ferramenta que agrega – e não anula. “Ainda temos muito a debater sobre o tema, inclusive sobre a necessidade de capacitação e desenvolvimento de habilidades para lidar com este ´novo´ instrumento de trabalho, mas o olhar humano deverá sempre prevalecer para que a arquitetura e as cidades continuem sendo para as pessoas”.
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A segunda finalidade do uso de IA na arquitetura é automatizar e agilizar processos mecânicos que precisam ser repetidos. Para Renata, a incorporação da IA representa um grande benefício para otimizar processos mecânicos, reduzir falhas e auxiliar no planejamento.
Sobre isso, Marcella ressalta que o uso de Inteligência Artificial na arquitetura, na etapa de tarefas mais mecânicas do dia a dia do arquiteto, é que gera grande parte do medo dos profissionais. “Quando se fala em IA na arquitetura, muita gente entra em pânico, achando que a profissão vai acabar. Nessa parte mecânica, é mais fácil a IA tomar conta porque o profissional pode passar mais tempo fazendo outras coisas, coisas mais interessantes”.
Ela dá um conselho para os profissionais da área: “não entrem em pânico, mas fiquem atentos para essas modificações que estão acontecendo em prazo muito menor do que outras“. Para ela, os arquitetos devem fazer uso de IA não só para gerar imagens bonitas esteticamente, mas também ter em mente que, na hora de transferir o projeto para um processo real de construção, “a IA não estará lá para ajudar”.
Marcella resolveu testar os limites da IA ao tentar dar ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, um visual com características dos trabalhos de Zaha Hadid, que foi uma arquiteta e designer iraquiano-britânica. Reconhecida como uma das maiores profissionais da área do final do século 20 e começo do 21, Zaha era chamada de “rainha das curvas” e “arquiteta futurista”. A ideia de Marcella foi verificar se suas imagens (elaboradas com ajuda da IA) se aproximam de uma cópia do trabalho de Zaha ou se contêm apenas referências provenientes da obra da arquiteta iraquiana:
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Marcella chama atenção para o fato de que as IAs não têm autonomia, não consistem em inteligência cognitiva. “Então precisamos nos comunicar com a máquina. Se ela me dá respostas é porque ela foi treinada com uma base de dados enorme para me dar respostas. Se a IA é a resposta, qual é a pergunta, então? É preciso saber fazer a pergunta para você conseguir ter uma resposta interessante. Nós arquitetos temos esse papel muito importante de estar na comunicação, como a gente vai se comunicar com a máquina daqui para a frente”.
Ela tem usado IA em projetos de casas e edifícios, mesclando imagens para dar referências específicas para clientes quanto a espaço, proporção, cor. “O Stable Diffusion para mim tem sido o melhor programa. Uso ChatGPT para me ajudar a escrever textos detalhados. A grande verdade é que sinto que nessas questões de criação está todo mundo experimentando, como usa, porque é novo”.
A arquiteta também já usou o serviço de inteligência artificial Midjourney para referências específicas destinadas a um projeto residencial:
Também com Midjourney Marcella elaborou imagens para uma série que ela chamou de “SP 40 graus”, em alusão a uma interferência na capital paulista nos dias atuais, de muito calor, com tobogãs e piscinas em meio aos prédios para os habitantes se refrescarem ao longo do dia. A principal ferramenta do Midjourney tem o sugestivo nome de “/imagine”. “Imaginei São Paulo de uma forma mais lúdica nos dias de calor”, conta a arquiteta.
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A cidade de Redmond, no estado de Washington, Estados Unidos, tem inteligência artificial em sua essência. É que ela abriga a sede da empresa Microsoft. Mas não é só isso: o município foi presenteado, em 2019, com uma instalação arquitetônica inovadora chamada Ada, assinada pela arquiteta, designer e artista norte-americana Jenny Sabin em parceria com engenheiros, cientistas de dados e designers da Microsoft Research.
É um espaço responsivo e imersivo que usa inteligência artificial para processar padrões faciais e emoções dos visitantes (coletadas por microfones e câmeras em diferentes pontos da instalação) que se transformam no que Jenny e equipe chamam de “dados de sentimento”.
Ao entrar na instalação Ada, essa reage – graças à IA – a expressões faciais, ruído, tons de voz e linguagem das pessoas, respondendo por meio de jogos de cores e luzes. Ada reage à medida que os espectadores interagem com ela. “Que eu saiba, essa instalação é a primeira estrutura arquitetônica movida por inteligência artificial em tempo real”, disse Jenny.
A estrutura é feita de nós impressos em 3D, hastes de fibra de vidro e tecido tricotado digitalmente. Jenny nomeou a instalação em homenagem a Ada Lovelace, que foi uma matemática inglesa que viveu no século XIX e escreveu o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina. Por isso ela é frequentemente citada como a primeira programadora de computador.
Uma preocupação quanto ao uso da inteligência artificial na arquitetura é a exclusão de profissionais desse processo. “Quando falamos em tecnologia precisamos pensar nisso. A arquitetura é muitas vezes uma profissão elitista. O profissional precisa de computador, precisa acessar documentações e treinamentos. Treinamentos em IA são todos em inglês. Sabemos que existe um degrau. Precisamos ter cuidado para não excluir parte das pessoas. Dentro das faculdades de arquitetura isso não é um ponto comentado”, critica Marcella.
Esse ponto é corroborado por Renata, que defende um olhar mais amplo para entender os impactos sociais do uso de IA na arquitetura. “Quão acessível será a inclusão da IA nos escritórios de arquitetura? Quanto isso impactará nos investimentos dos escritórios e consequentemente nos orçamentos? Será que não estamos falando de uma ferramenta voltada apenas para uma minoria, reforçando a exclusão?”
Ela acrescenta que a exclusão está em múltiplas camadas: sociais, de gênero, de acesso a uma formação qualificada. “Num momento em que os debates sobre as mudanças climáticas são iminentes e que ainda contamos com uma grande parcela da população vivendo em situação de déficit habitacional, sem acesso à infraestrutura básica como água e esgoto, como essa tecnologia poderia contribuir para o desenvolvimento de soluções sustentáveis, que instrumentassem a atuação em arquitetura e urbanismo dedicada à população mais vulnerável? Deve haver iniciativas, mas provavelmente não são a maioria”, questiona Renata.
