Silvicultura urbana: o resgate da selva na selva de pedra

Cultivo e manejo de florestas urbanas é estratégia para desafios socioambientais e preservação da biodiversidade nas cidades.

Por Ana Cecília Panizza em 17 de maio de 2024 7 minutos de leitura

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O futuro é urbano. Mais da metade da população mundial vive em cidades e, até 2050, essa parcela deve chegar a 70% segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Isso quer dizer que as selvas de pedra devem dominar ainda mais as paisagens urbanas, o que agrava problemas ambientais como poluição e aquecimento global. Uma das soluções para minimizar esse impacto são as selvas de verdade. É aí que entra a silvicultura urbana, que é o cultivo e o manejo de árvores e outras vegetações nas cidades em espaços públicos ou privados. Além do impacto ambiental, o conceito contribui para o bem-estar fisiológico, psicológico e social da população. 

O marco deste movimento é considerado o “Bosco Verticale”, primeiro prédio com o conceito de floresta vertical, projetado pelo arquiteto italiano Stefano Boeri, em Milão, na Itália, em 2014. Ponto turístico premiado mundialmente, ele é formado por duas torres residenciais cobertas por cerca de 20 mil plantas, arbustos e árvores. Toda essa vegetação refresca os apartamentos e se tornou habitat de diversos animais, além da contribuição para contenção do efeito estufa proporcionada pelo processo de fotossíntese.

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Bosco Verticale

O projeto é também símbolo da campanha global pela silvicultura urbana lançada pelo arquiteto. No ano em que ele completa 10 anos, o fato de a capacidade de ampliar superfícies verdes nas cidades ser uma das maneiras mais eficientes de se tentar reverter a mudança climática, como destacou Boeri em entrevista à CNN, o coloca mais uma vez em evidência

O desafio, contudo, é disponibilizar florestas verticais para pessoas de baixa renda, a partir da redução do custo de construção, de modo a ser possível responder a duas grandes questões para o futuro das cidades: mudança climática e pobreza. 

Doses diárias de natureza 

Além do impacto ambiental, investir em silvicultura urbana ajuda a aumentar a conexão das pessoas com a natureza. Um estudo realizado em 2019 por pesquisadores do Departamento de Biociências da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, mostrou que crianças que passaram a infância perto de espaços verdes têm menos propensão a doenças mentais quando se tornam adultas. Segundo o documento, crianças que cresceram com o nível mais baixo de espaço verde próximo delas “tinham um risco até 55% maior de desenvolver um transtorno psiquiátrico independentemente dos efeitos de outros fatores de risco conhecidos”.

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Leia mais: Rejuvenescendo a cidade: o poder oculto dos espaços verdes (habitability.com.br) 

Vegetações nas cidades também ajudam a controlar a erosão, a poluição da água e a luminosidade. Contribuem para lazer e recreação. Melhoram a paisagem local (estética/paisagismo) e o conforto térmico, ajudando a refrescar o ar. Para se ter uma ideia, a presença de árvores de sombra pode baixar as temperaturas em até oito graus Celsius e reduzir a necessidade de ar condicionado em 30%, segundo a instituição britânica Trees for Cities, que tem como propósito ajudar as cidades a se tornarem mais verdes. As árvores também resfriam o ar absorvendo água e liberando-a por meio da evapotranspiração, combatendo o efeito de ilha de calor causado pelo cimento e pelo asfalto que dominam a maioria das áreas metropolitanas. 

Silvicultura urbana depende de ação conjunta

Explorar o potencial da silvicultura urbana, contudo, demanda um esforço coletivo, que vai além da iniciativa privada e dos profissionais. Conforme explica a arquiteta Pérola Felipette Brocaneli, professora de paisagismo no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, os municípios precisam de leis e incentivos fiscais, o que demanda planejamento. “O ideal é estabelecer áreas que conectem grandes maciços de vegetação e demarcar estes territórios no plano diretor e na Lei de Uso e Ocupação do Solo”, diz ela, que é professora convidada na Universidad Cientifica del Sur, em Lima, Peru, onde leciona no curso de Arquitectura y Urbanismo Ambiental. 

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Pérola Felipette Brocaneli (Foto: Divulgação)

As administrações municipais precisam acompanhar a precipitação pluviométrica (regime de chuvas); pesquisar e determinar as espécies de plantas mais adequadas; planejar a produção e o cultivo; preparar o solo; realizar o manejo e o tratamento da vegetação; organizar coletas e cortes das árvores; fazer inventário florestal das áreas. O meio físico (espaço, adaptação de espécies florestais a diferentes níveis de luminosidade, solos, topografia, microclimas) também influencia. É preciso, ainda, criar bancos de dados de manejo da floresta urbana e investir em produção de mudas, plantio com adequações (quanto a espaçamento e distribuição) e manutenção (nutrição, poda, controle de pragas e outros cuidados especiais).  

De prédio à cidade, da Itália para o mundo, uma nova era para a silvicultura urbana

Indo além no seu conceito, Boeri também é o autor de uma cidade floresta no município chinês de Liuzhou, que tem cerca de um milhão de habitantes e fica na montanhosa província de Guangxi, uma das áreas urbanas mais afetadas pela poluição atmosférica do mundo devido à superpopulação do país. Em fase de construção, a Cidade Florestal de Liuzhou será a primeira desse tipo no mundo a abrigar cerca de 30 mil pessoas. Terá escritórios, casas, hotéis, escolas e hospitais que serão cobertos por cerca de 40 mil árvores e 1 milhão de plantas de mais de 100 espécies diferentes, distribuídas não apenas ao longo das avenidas, parques e jardins, mas também nas fachadas de edifícios. Assim, será capaz de absorver 10 mil toneladas de gás carbônico e produzir 900 toneladas de oxigênio. 

Cidade Florestal de Liuzhou (Foto: Reprodução/Stefano Boeri Architetti/Boeri Studio)

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A Cidade Florestal de Liuzhou também foi projetada para ser autossuficiente em energia graças ao uso de energia geotérmica para os espaços internos dos edifícios e à instalação de telhados de painéis solares de alta eficiência para a captação de energia eólica renovável. 

Na cidade de Guadalajara, no México, um exemplo de silvicultura urbana é a Floresta Urbana. O projeto engloba os principais parques da região e tem como objetivo administrar esses espaços por meio de um sistema integral de cuidado, recuperação e manutenção dos ecossistemas urbanos com uma perspectiva social inclusiva, transformando-os em locais de bem-estar social e ambiental. 

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Projeto de revitalização do Parque Natural Huentitán (Foto: César Bejar/SPRB Arquitectos)

Ao recuperar espaços verdes, Guadalajara oferece um serviço com gestão periódica que inclui aumento da massa florestal em bom estado, cuidados com a biodiversidade nativa e geração de espaços seguros e agradáveis ​​para quem passa pelo local. As florestas urbanas também fazem o papel de amortecedores dos efeitos crescentes da mudança climática: nas áreas mais arborizadas de Guadalajara foi registrada temperatura entre dois e três graus menores do que no ambiente urbano com mais espaços construídos. 

Para a arquiteta Pérola Felipette Brocaneli, professora de paisagismo no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, “o que há de mais inovador no momento é o trabalho do arquiteto chinês Kongjian Yu, que associa a água e o verde em propostas disruptivas e de qualidade”. Ele criou o conceito de cidade-esponja, que pode ser um caminho para adaptação às mudanças climáticas por meio da transformação das cidades em espaços para absorver e escoar água da chuva.  

Leia mais: Uma cidade que absorve água. Conheça a cidade-esponja! (habitability.com.br) 

Entre os projetos recentes de Yu está o Nanchang Fish Tail Park, na cidade de Nanchang, centro-leste da China. O arquiteto transformou um rio abandonado em uma floresta flutuante, que regula as águas pluviais, fornece habitat para animais, oferece recreação e estimula o contato das pessoas com a natureza.  

Nanchang Fish Tail Park (Foto: Reprodução/Turenscape)

Outras práticas inovadoras em silvicultura urbana são observadas mundo afora e reconhecidas pela Fundação Arbor Day e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), que selecionam as cidades mais arborizadas com o programa Cidades de Árvores do Mundo. 

A lista mais recente (de 2023) contempla 200 municípios de 22 países. Do Brasil são 34. Entre elas as capitais Belo Horizonte/MG, Campo Grande/MS, Curitiba/PR, Fortaleza/CE, Goiânia/GO, João Pessoa/PB, Macapá/AP, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP.

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Com uma população que passa de 700 mil habitantes, São José dos Campos, no interior de São Paulo, também figura na lista. Conhecida mundialmente por sediar a fabricante de aviões Embraer, ostenta agora o certificado de “cidade-árvore”, mostrando que é possível conciliar desenvolvimento e tecnologia com preservação da natureza.

A cidade ainda tem uma meta ambiciosa de florestamento urbano: adicionar 56 mil árvores ao seu inventário atual de 80 mil até 2029. Para isso, além de investir em silvicultura urbana, o município criou um corredor sustentável de transporte: 100% dos veículos do transporte público são elétricos. São José também implantou ciclovias e criou um código de edificações que exige que toda obra realizada na cidade adote tecnologias e sistemas de menor impacto ambiental (Green Building). 

Foto: Claudio Vieira/Prefeitura Municipal de São José dos Campos

A exigência não é só para quem constrói, mas para quem circula pela cidade. Quem passa pela área verde do Paço Municipal recebe um recado das próprias árvores. Cada uma contém, em seu tronco, uma placa com QR code com a localização da árvore, nome popular, nome científico, local de origem e informações sobre a poda. Na placa há também um aviso e um pedido: “Sou sua árvore. Cuide bem de mim”.