Cidade para crianças traduz a grandeza dos pequenos
Planejar uma cidade para as crianças é garantir espaços mais seguros para todos. Conheça as cidades brasileiras que já adotaram o olhar da infância no planejamento urbano!
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Nathalia Ribeiro em 5 de março de 2025 11minutos de leitura
Foto: CandyRetriever/ Shutterstock
“E, quem dera, os moradores / E o prefeito e os varredores / E os pintores e os vendedores / As senhoras e os senhores / E os guardas e os inspetores / Fossem somente crianças”. Os versos da música “Cidade Ideal”, escrita por Chico Buarque e cantada pelo grupo “Os Saltimbancos”, desenham um retrato utópico, mas que traz a reflexão: o que uma cidade precisa ter para realmente ser boa para as crianças? Espaços verdes e lazer acessível são apenas algumas das peças desse quebra-cabeça. Afinal, criar uma cidade para as crianças é também investir em segurança, educação, saúde e inclusão — não apenas dos pequenos, mas de toda a comunidade.
Atualmente, a maioria das crianças no mundo cresce em áreas urbanas. No Brasil, por exemplo, cerca de 83% das crianças moram em cidades, conforme dados do IBGE. No cenário global, das 2 bilhões de crianças, que vão da infância à adolescência (até 14 anos), aproximadamente 1 bilhão vive em centros urbanos, segundo estimativas do World Population Review. No entanto, embora a maior parte das crianças viva nas cidades, a maioria dessas cidades não foi planejada para atender às suas necessidades.
A rápida urbanização do último século resultou na criação de espaços urbanos inseguros e insalubres, especialmente em áreas periféricas e superlotadas. Para muitos pequenos, a cidade não oferece as condições para um desenvolvimento saudável e seguro. É aqui que entra a importância de um planejamento urbano que olhe para as cidades pela ótica da infância. Mas dá para colocar-se nesse lugar?
A Global Designing Cities Initiative (GDCI) lançou o guia Designing Streets for Kids (Projetando ruas para crianças, em tradução livre), com o objetivo de criar uma nova hierarquia de critérios para o desenvolvimento de projetos urbanos globalmente. A iniciativa visa promover abordagens de design centradas nas necessidades dos usuários, com base nos princípios do design universal. Focada na ergonomia do espaço e do mobiliário urbano, o guia busca melhorar o atendimento às necessidades das crianças e suas famílias. Além disso, estimula a acessibilidade para ciclistas e outros meios de transporte não motorizados, promovendo também o uso do transporte público nas áreas centrais das cidades. A seguir, algumas das principais estratégias.
Observar a partir do olhar das crianças
Ao projetar vias urbanas voltadas para as crianças, não estamos apenas atendendo a um grupo etário específico, mas também levando em conta as necessidades de todos aqueles que convivem, cuidam ou interagem com uma criança. Mais do que isso, as demandas da infância são universais. Dessa forma, um design pensado para atender às necessidades das crianças também beneficia outros usuários, promovendo mais segurança e acessibilidade nos espaços públicos para todos.
Para enfrentar as mudanças climáticas, as cidades devem adaptar seu planejamento urbano, incorporando soluções resilientes. Uma rede de infraestrutura verde pode transformar áreas urbanas em espaços multifuncionais capazes de absorver e redirecionar o excesso de água durante tempestades intensas. Espaços verdes desempenham um papel importante em diversos aspectos, desde o controle de enchentes até a melhoria da qualidade do ar e a redução de ilhas de calor. Até mesmo terrenos escolares podem ser aproveitados para mitigar esses desafios. Pequenas intervenções, quando replicadas em escala, podem criar uma rede integrada que fortaleça a resiliência urbana.
Áreas verdes e jardim comunitário
Projeto Cidade das Crianças (Foto: Reprodução/ Prefeitura de Jundiaí – SP)
Parques e espaços verdes são fundamentais na revitalização de terrenos subutilizados, trazendo a natureza de volta às comunidades e criando áreas dinâmicas e adaptáveis. Promover uma conexão mais próxima entre crianças e a natureza deve ser uma meta central das cidades, utilizando ambientes verdes para fomentar saúde e bem-estar. Para potencializar essa conexão, pequenos jardins ou hortas comunitárias podem atuar como pontos de encontro, incentivando atividades ao ar livre, interação entre gerações, socialização e o desenvolvimento de novas habilidades.
Espaços culturais e multigeracionais
Elementos que valorizam a educação cultural e as tradições locais contribuem para a construção de uma vida urbana mais inclusiva e enriquecedora. Intervenções urbanas sensíveis ao contexto podem transformar espaços construídos ou públicos, preservando a cultura e o patrimônio da região. Esse tipo de planejamento incentiva crianças a estabelecerem uma conexão emocional com seu bairro ou cidade.
Além disso, ambientes projetados para acolher diferentes gerações promovem interação e troca entre crianças e idosos. Espaços que oferecem atividades interativas ou contemplativas, como áreas de convivência ou programas de jardinagem comunitária, fortalecem laços entre gerações. Essas iniciativas ajudam a reduzir o isolamento social entre os idosos e despertam nos mais jovens sentimentos de empatia e compaixão, enriquecendo as relações comunitárias e fortalecendo o senso de pertencimento.
Espaços de recreação
Projeto Cidade das Crianças (Foto: Reprodução/ Prefeitura de Jundiaí – SP)
A brincadeira é fundamental para o aprendizado e o desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida. Sempre que possível, é importante incorporar espaços de recreação e aprendizado nas ruas e áreas públicas, enriquecendo os trajetos diários e criando novas oportunidades para que as crianças explorem o mundo de forma única. Elementos que despertem a curiosidade, como diferentes texturas, materiais, cores, iluminação e mobiliário interativo, podem ser aliados essenciais para os projetistas na criação de espaços públicos acessíveis e atraentes para as crianças.
O excesso de carros nas cidades é uma das maiores barreiras para a criação de ambientes mais amigáveis às crianças, sendo também um fator que limita a independência dos pequenos em relação à mobilidade. O planejamento urbano deve priorizar a segurança de todos, especialmente das crianças. Medidas como travessias bem sinalizadas e coloridas, além de espaços compartilhados, podem redefinir o uso das vias, aumentar a conscientização dos pedestres e incentivar atividades ao ar livre.
Assegurar a prioridade dos pedestres, os usuários mais vulneráveis no trânsito, é essencial e pode ser alcançado por meio de limites de velocidade reduzidos e outras estratégias de moderação de tráfego. A criação de “áreas calmas”, com menor circulação de veículos, contribui para ambientes mais seguros, incentivando as crianças a brincar e interagir com mais liberdade e segurança.
Calçadas amplas e acessíveis
Foto: Ladanifer/ Shutterstock
As calçadas são fundamentais na rede de mobilidade usada por crianças e suas famílias. Sua concepção deve considerar tanto a função de percurso diário quanto a de espaço público onde as crianças possam brincar e se movimentar livremente.
Calçadas bem projetadas oferecem um caminho claro e acessível, atendendo às necessidades e ao fluxo de pedestres diários. Passeios de qualidade garantem espaço suficiente para que várias pessoas caminhem lado a lado, acomodem pequenos grupos e ainda incluam áreas onde é possível parar e conversar informalmente com os vizinhos. Além disso, calçadas seguras e confortáveis devem ser bem iluminadas à noite, contar com áreas sombreadas para descanso e caminhada e apresentar sinalização adequada.
Ciclofaixas e ciclovias seguras
Foto: Bruno/ Adobe Stock
Oferecer rotas acessíveis e ciclovias exclusivas e protegidas é a maneira mais eficaz de incentivar o uso de bicicletas na cidade. Embora as crianças possam andar de bicicleta com mais liberdade em ruas tranquilas e com tráfego reduzido, ciclovias dedicadas são essenciais para proporcionar maior autonomia nos deslocamentos. Em vias de alto fluxo e com maior velocidade, é fundamental que as ciclovias sejam mais amplas e possuam sinalização adequada para garantir a segurança de todos.
Ruas abertas
A suspensão temporária da circulação de veículos em determinadas áreas oferece uma oportunidade para que as comunidades interajam de maneira mais segura e próxima com o espaço urbano. Iniciativas como as ruas abertas têm sido destacadas pelas Nações Unidas como uma solução eficaz para enfrentar os problemas de poluição nas proximidades de escolas. Mesmo que de forma temporária, a abertura de ruas representa um avanço na criação de cidades mais humanas, proporcionando mais oportunidades para as crianças aproveitarem atividades ao ar livre.
Mobilidade urbana para proteger os pequenos nas cidades
A mobilidade urbana é um dos aspectos mais críticos para garantir a segurança das crianças nas cidades. De acordo com um levantamento realizado pela Aldeias Infantis SOS, uma organização global que lidera o maior movimento de cuidado do mundo, os acidentes envolvendo crianças e adolescentes no Brasil aumentaram quase 8% em 2023, em comparação com o ano anterior, alcançando o maior número desde 2019. No total, foram registradas 119.245 internações devido a lesões não intencionais entre crianças de 0 a 14 anos, contra 109.988 no ano de 2022.
Algumas cidades já reconhecem a importância de garantir a segurança das crianças no trânsito. Em São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) da cidade criou o Programa Rota Escolar Segura, com o objetivo de melhorar a segurança viária nas áreas periféricas ao redor das escolas, especialmente nos trajetos a pé. A partir da análise dos acidentes nas diferentes regiões, a CET desenvolveu intervenções viárias, utilizando urbanismo tático. Essas intervenções buscam aumentar a visibilidade das crianças nas ruas, encurtar as travessias e incentivar o uso dessas passagens pelos estudantes. Entre as medidas adotadas estão a instalação de semáforos, a melhoria da iluminação nas travessias e a redução dos limites de velocidade.
A primeira Rota Escolar Segura foi implementada em Itaquera, na COHAB José Bonifácio, com resultados positivos, como a melhora no comportamento de pedestres e motoristas, além de um maior envolvimento das crianças e da comunidade local. Outras rotas já foram implantadas no Jardim Nakamura, Vila Carmosina e Vila Campestre.
Lançamento do Programa Território Educador no Campo Limpo (Fotos: Luiz Guadagnoli/ SECOM)
Além desse programa, São Paulo também conta com o projeto Territórios Educadores, que visa transformar os trajetos entre a escola e a casa em travessias mais seguras e interativas. O programa conecta oito centros de ensino e promove a criação de novas sinalizações, lombadas, faixas de pedestre, além da redução dos limites de velocidade, com o objetivo de aumentar a segurança e engajar a comunidade.
Soluções de mobilidade acessível e sustentável
Foto: Reprodução/ Câmara Municipal de Fortaleza
Em 2013, Fortaleza lançou o Bilhetinho, um bilhete eletrônico criado para facilitar o embarque das crianças nos ônibus, eliminando a necessidade dos pequenos pularem ou passarem debaixo da catraca. A iniciativa, mantida até hoje pela Prefeitura, visa melhorar o acesso das crianças ao transporte público. Desde seu lançamento, o programa já distribuiu aproximadamente 30 mil cartões.
O Bilhetinho é gratuito e destinado a crianças de dois a sete anos de idade ou com altura inferior a 1,10 metros. Embora não seja obrigatório, o bilhete proporciona maior conforto e praticidade, tornando o transporte coletivo mais acessível e conveniente para as crianças.
Além do Bilhetinho, Fortaleza também conta com o Mini-Bicicletar, lançado em 2017, que é uma iniciativa focada no transporte sustentável para crianças de até 10 anos. O sistema funciona dentro da rede de bicicletas compartilhadas, o Bicicletar, que é voltada para adultos. Para garantir uma minibicicleta, o responsável pela criança deve adquirir um passe. Atualmente, minibicicletas são distribuídas em 11 estações pela cidade. Desde sua implementação, o programa já registrou mais de 18 mil viagens.
Iniciativas de bem-estar infantil transformam cidades
Diversas iniciativas voltadas ao bem-estar infantil têm ganhado espaço em cidades brasileiras, muitas delas apoiadas por instituições que oferecem apoio financeiro. Um exemplo é a Urban95, projeto internacional da Fundação van Leer, que visa incluir as perspectivas de bebês, crianças pequenas e seus cuidadores no planejamento urbano, na mobilidade e nos serviços dedicados a esse público. Por meio dessa iniciativa, gestores públicos e técnicos recebem capacitação e apoio para promover o desenvolvimento integral das crianças, especialmente em regiões vulneráveis.
Recife, capital de Pernambuco, foi a primeira cidade brasileira a aderir à Urban95, utilizando investimentos na primeira infância como uma abordagem inovadora para enfrentar a criminalidade e diminuir desigualdades sociais em bairros carentes. Entre as principais ações adotadas na cidade, destacam-se a ampliação da oferta de educação infantil e a descentralização dos espaços Mãe Coruja, que fortalecem os vínculos familiares entre mães, bebês e suas famílias.
Programa Mais Vidas nos Morros (Foto: Marcos Pastich/ Mais Vida nos Morros)
Além disso, o Programa Mais Vida nos Morros foi expandido para 54 comunidades, com iniciativas voltadas à melhoria dos espaços públicos, redução de resíduos e prevenção de deslizamentos. A integração da primeira infância aos Centros Comunitários da Paz (Compaz) também tem se mostrado essencial para aproximar serviços e atividades das populações mais vulneráveis.
Boa Vista/RR investe na Primeira Infância
Já em Boa Vista, capital de Roraima, o investimento na primeira infância transformou a cidade em referência nacional e internacional. Por meio do programa intersetorial Família Que Acolhe, a cidade integrou serviços de saúde, educação, assistência social e comunicação, acompanhando famílias desde a gestação até os seis primeiros anos de vida. Esse programa visa garantir o desenvolvimento integral das crianças e, paralelamente, qualifica constantemente os serviços de educação, saúde e assistência social.
Além disso, diversas intervenções foram qualificadas e implementadas em Boa Vista por meio do olhar da Urban95, considerando as necessidades das crianças pequenas, com foco na altura média de até 95 cm. O projeto Caminhos da Primeira Infância é um exemplo dessas ações, presente nos bairros Nova Cidade, Cidade Satélite e Paraviana. O objetivo foi transformar esses espaços urbanos para torná-los mais acessíveis e acolhedores para as crianças, promovendo seu desenvolvimento e interação.
Entre as melhorias, destacam-se a revitalização das praças, que agora oferecem mais oportunidades de convivência e interação entre pais e filhos. A instalação de Selvinhas Amazônicas, fontes interativas e playgrounds modernos tornou esses locais mais dinâmicos e atraentes. Houve também um investimento significativo em tecnologia, o que possibilitou à gestão municipal monitorar e gerenciar os dados relacionados às políticas públicas para a primeira infância, permitindo decisões mais informadas e eficazes.
Em entrevista ao portal Roraima em Foco, a secretária municipal de Projetos Especiais (SMPE) Andréia Neres destacou que, por meio dessas intervenções e da gestão orientada por dados, a cidade tem conseguido melhorar a qualidade de vida das crianças e suas famílias, criando ambientes mais seguros, interativos e que promovem o desenvolvimento integral desde os primeiros anos.
Cidade para as crianças e para todos
Projeto Cidade das Crianças (Foto: Reprodução/ Prefeitura de Jundiaí – SP)
No final de 2018, Jundiaí/SP passou a fazer parte do projeto Cidade das Crianças, uma iniciativa idealizada pelo pedagogo italiano Francesco Tonucci, com o objetivo de envolver as crianças na criação de políticas públicas para suas cidades. O projeto visa garantir que a voz infantil seja ouvida no processo de construção do espaço urbano, levando em consideração suas necessidades e perspectivas.
Na cidade, dois programas principais fazem parte do projeto: o Comitê das Crianças e o Ruas de Brincar. O Comitê é formado por 28 crianças voluntárias, selecionadas por sorteio, representando 23 bairros de Jundiaí. De acordo com as regras, os membros do Comitê se reúnem mensalmente para discutir e propor soluções sobre questões relacionadas à segurança, educação, saúde e lazer para a infância. As propostas geradas durante essas reuniões são apresentadas ao prefeito na última reunião do ano, em novembro, com o objetivo de influenciar as políticas públicas voltadas às crianças.
Por outro lado, o programa Ruas de Brincar tem como objetivo criar espaços seguros para a diversão infantil ao promover a interrupção do tráfego e a abertura de vias para atividades lúdicas. A organização do fechamento das ruas é feita pelos próprios moradores, enquanto a prefeitura fornece os cavaletes e a sinalização necessária para garantir a segurança do evento. Para realizar a ação, os moradores devem preencher um formulário online, coletar as assinaturas de pelo menos 75% dos residentes do trecho desejado e entregar os documentos na prefeitura. A decisão, que tem validade de um ano, é publicada no Decreto da Imprensa Oficial do Município, permitindo a realização das atividades durante os domingos e feriados.
Essas iniciativas buscam transformar a cidade em um espaço mais inclusivo e acolhedor. Como afirmou Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, durante uma palestra em Salvador: “Se uma cidade é boa para os mais pobres, as crianças e os mais vulneráveis, então é uma cidade boa para todos”.
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