Necessidades específicas, design universal

Conceitos e iniciativas ajudam municípios a promoverem acessibilidade e acolhimento para todos os públicos, com ou sem dificuldade de locomoção, com planejamento e implementação de serviços considerando a diversidade

Por Redação em 23 de janeiro de 2024 8 minutos de leitura

design universal

Diante da diversidade de pessoas e, consequentemente, de necessidades, criar espaços que atendam às diferentes e numerosas especificidades é um desafio, cujo solução passa por um conceito, aparentemente, contrário à multiplicidade: o design universal. Através de padrões, é ele que contribui significantemente para que a arquitetura e o urbanismo cumpram o papel social da inclusão por meio da acessibilidade, da mobilidade e como promotores da qualidade de vida.

Tendo em vista que cerca de 1 bilhão de pessoas vivem algum tipo de incapacidade, segundo estimativa do Banco Mundial – o equivalente a 12,5% da população mundial – e o cenário de inversão da pirâmide etária em curso em diversos países em desenvolvimento como o Brasil, a abordagem mais macro que o design universal propõe se destaca.

Para um, para todos

Segundo Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o envelhecimento da população brasileira está ocorrendo em velocidade recorde. Enquanto a população geral cresceu 6,43%, a de pessoas com 65 anos de idade ou mais aumentou 57%, desde 2010, representando, atualmente, 10,9% da população. São 22,2 milhões de pessoas, mais que a população do estado de Minas Gerais. Essa transformação na pirâmide etária do País demanda políticas inclusivas, desde o planejamento urbano, tendo o design universal como uma ferramenta estratégica.

Mas o grupo de indivíduos que pode ser beneficiado pela prática do conceito vai além, englobando pessoas com deficiência de locomoção, como gestantes, obesos e qualquer indivíduo com dificuldade para caminhar (de maneira temporária ou permanente). Além de pessoas com mobilidade reduzida, outras cidadãos podem enfrentar dificuldades, como aqueles que estão, por exemplo, com um carrinho de bebê, crianças ou mesmo alguém distraído – ou os smombies.

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Foto: Freepik

Simplicidade e efetividade

A proposta do design universal contempla todas as etapas do processo de design, desde a concepção até a produção e o uso final do serviço ou produto, considerando ergonomia, acessibilidade, usabilidade e segurança.

Dentre seus princípios estão flexibilidade na utilização, simplicidade e clareza, igualdade de uso e informação acessível. Assim, viabiliza produtos, serviços, ambientes e tecnologias que atendem às necessidades de todos os usuários, independentemente de suas dificuldades, ajuda a promover a inclusão social, eliminar barreiras e criar soluções mais econômicas e simples. 

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Exemplo prático de design universal é a porta automática ou mesmo portas largas, que dão acesso a cadeirantes e pessoas com pacotes ou bagagem. Em estações de emergência, o uso de cores e símbolos altamente conhecidos permite que todos identifiquem os controles disponíveis de modo mais fácil.

No caso de sistemas digitais, ranhuras no teclado do celular revelam onde estão as funções mais importantes, sem que o usuário precise olhar para as teclas. Da mesma forma, o piso tátil em locais estratégicas permitem ver além da visão. O desafio é aplicar essas e outras práticas de forma integrada e fundamental e não simplesmente como um item dos amplos códigos de construção a ser cumprido, trazendo a visão holística do design inclusivo.

Urbanismo inclusivo 

Nas cidades, ele pode se manifestar em práticas do urbanismo inclusivo, que incorpora a acessibilidade em todas as etapas do planejamento municipal, desde o projeto até a implementação e manutenção dos serviços.

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Dentre as medidas de urbanismo inclusivo estão calçadas acessíveis, rampas de acesso, banheiros públicos adaptados, sinalização tátil, transporte público acessível e espaços públicos seguros e acolhedores.

Uma cidade que pensa nas pessoas precisa ter, por exemplo, rampas, vagas especiais, calçadas antiderrapantes, faróis adaptados, dentre outras soluções. O transporte público também precisa passar por modificações para atender a todos os passageiros.

O “curb cut effect“, bom pra um, bom pra todos

curb cut effect

“Quando você coloca o deficiente visual no centro do seu planejamento, a cidade fica melhor para todos”. A frase do arquiteto norte-americano Chris Downey ilustra bem o chamado efeito “curb-cut”. Cego desde 2008, ele tornou-se pioneiro no design acessível para pessoas cegas, unindo design e planejamento urbano a partir de suas próprias experiências.

Como explicou Angela Glover Blackwell, autora de “Curb-Cut Effect”, publicado na Stanford Social Innovation Review, o conceito está alinhado à equidade, que não deve ser confundida com igualdade. “A igualdade dá a todos o direito de viajar de ônibus. A equidade garante que haja cortes no meio-fio para que as pessoas em cadeiras de rodas possam chegar ao ponto de ônibus e aos elevadores para que possam entrar no ônibus, e garante que haja linhas de ônibus onde as pessoas precisam delas para que possam chegar aonde precisarem. Equidade significa promover uma inclusão justa e equitativa em toda a sociedade e criar condições nas quais todos possam participar, prosperar e atingir o seu pleno potencial”, escreveu ela.

O “efeito curb-cut” começou com um movimento de ativistas do município de Berkeley, no estado norte-americano da Califórnia, na década de 1970. Circular com cadeira de rodas pelas calçadas da cidade não era nada fácil. Ao mesmo tempo, a cidade vivia uma fase de ativismo político da população, que promoveu movimentos pela liberdade de expressão, antiguerra, pelos direitos civis. A falta de mobilidade urbana também entrou na pauta. Em um ato político, de desafio, um grupo de amigos despejou cimento em um meio-fio, improvisando uma rampa. Mas o ato simbólico, seguido de pressão de ativistas com deficiência, fez com que a prefeitura instalasse o primeiro corte de meio-fio oficial, em um cruzamento movimentado, em 1972.

A mobilização dos manifestantes, e esse primeiro corte de meio-fio, contribuíram para mudar a forma como o país pensava esse tipo de barreira nas cidades. Depois da iniciativa de Berkeley seguiram-se centenas de milhares de cortes de meio-fio, país afora, desencadeando pressões da sociedade por outras melhorias de acessibilidade em calçadas, salas de aula, dormitórios, banheiros, transporte público… Até que, em 1990, o então presidente George H.W. Bush assinou a Lei dos Americanos Portadores de Deficiência, que proíbe a discriminação com base na deficiência e exige mudanças nos ambientes construídos. Isso gerou uma mobilização ainda maior – e surpreendente. Como escreveu Angela em seu artigo, “quando o muro da exclusão caiu, todos se beneficiaram – não apenas as pessoas em cadeiras de rodas”. Pais empurrando carrinhos, trabalhadores empurrando carrinhos pesados, os viajantes de negócios transportando bagagens e até mesmo os corredores e skatistas. Um estudo sobre o comportamento dos pedestres em um shopping center de Sarasota, na Flórida, revelou que nove em cada dez “pedestres livres” se esforçam para usar o meio-fio. “Como observou o jornalista Frank Greve, as barricadas invadidas por defensores dos deficientes em Berkeley, há 40 anos, tinha alguns centímetros de altura, “mas hoje milhões de americanos passam diariamente pelas brechas”.

Veja também o episódio 26 do podcast Habitability:

Tecnologia 

A tecnologia também é uma forte aliada. Entre as soluções estão aplicativos para mapear rotas acessíveis, dispositivos de comunicação para pessoas com deficiência auditiva e sistemas de transporte público adaptados. 

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É o caso do Kepler.gl, ferramenta de análise geoespacial de código aberto para conjuntos de dados em grande escala, que permite que os usuários mapeiem a acessibilidade em ambientes construídos em diferentes dimensões, identificando as áreas que têm circulação fácil e as que apresentam algum tipo de barreira.

Foto: Kepler.gl/Divulgação

A solução é usada no mapeamento de dois distritos da cidade de Vigo, na Espanha, onde o nível de acessibilidade foi comparado ao lazer das crianças em cada edifício. O mapa da ferramenta calcula o número de etapas e a distância que uma criança deve viajar, para alcançar a área infantil mais próxima, sem assistência de um adulto. Com isso, cada edifício recebe um valor numérico, que mostra seu nível de acessibilidade. Os resultados? Calçadas de largura adequada para atender a todas as pessoas, incluindo cadeirantes e idosos; locais próximos a escolas e áreas com muita circulação tiveram redução da velocidade máxima permitida para os veículos; e zonas seguras para idosos foram criadas e sinalizadas perto de serviços voltados para esse público, a fim de alertar motoristas e garantir segurança.

O exemplo de Toronto

Wheel Trans, transporte exclusivo para pessoas com deficiência implementado pelo governo de Toronto

Quando o assunto é acessibilidade, a cidade de Toronto, no Canadá, é referência mundial. A transformação de um modelo rodoviarista para um desenho urbano que promove a caminhabilidade. Por meio do programa Toronto Walking Strategy, a estratégia reforça que todos são pedestres a partir da concepção de que o espaço urbano precisa ser acessível a todos. Os pedestres são a prioridade de segurança dos projetos das ruas, pois são os mais vulneráveis e têm as maiores taxas de morte, entre os usuários das vias públicas.

Para incentivar caminhadas, o desenho urbano de Toronto conta com uma rede de calçadas com espaços exclusivos para pedestres, separados de veículos motores e de bicicletas. As diretrizes de mobilidade urbana incluem rotas à pé, com caminhos contínuos, claros, diretos e sem obstáculos.

Na cidade, a faixa de pedestres não é sinalizada com listras brancas pintadas no asfalto, que podem ser até escorregadias quando chove: a travessia é feita com o mesmo material e altura das calçadas, o que proporciona mais conforto para os usuários, com uma sinalização clara de continuidade do caminho, indicando que aquele espaço é destinado, também, à pessoas, e não somente a veículos. 

Com o mesmo objetivo, está em teste em Fortaleza/CE o uso de uma faixa de pedestres que se ilumina no momento da travessia das pessoas. Instalado na rotatória da Praça Portugal na capital cearense, o sistema utiliza inteligência artificial (IA) para acionar a luz.

Mas no município canadense também avistam-se muitos elevadores e rampas de acesso em vários pontos. A parte turística de Toronto também merece destaque. Hotéis, restaurantes, transportes, museus e diversos outros atrativos, são totalmente adaptados.

A Galeria de Arte de Ontário disponibiliza cadeiras de rodas e andadores, permite a circulação de cão-guia nos espaços públicos e oferece entrada gratuita ao acompanhante do visitante com deficiência ou mobilidade reduzida. Também dispõe, gratuitamente, do BlindSquare, aplicativo de GPS desenvolvido para cegos, surdo-cegos e pessoas com baixa visão, que alerta o usuário para cada parada de audiodescrição, além de fornecer a conversão de texto para voz nas salas de exibição.

Foto: Reprodução/Site do Museu Real de Ontário

Além dessas medidas, no Museu Real de Ontário o guia de acessibilidade apresenta a infraestrutura completa do museu, que conta com audiodescrição, elevadores, estacionamento e sanitários adaptados, além de uma série de galerias permanentes, com réplicas em bronze de artefatos que apresentam legendas em braile.

Direito de ir e vir 

Outro exemplo brasileiro é o programa da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), o Calçada Acessível, que beneficia mais de 40 municípios fluminenses. O objetivo é oferecer à população melhores condições de mobilidade à pé, a partir de projetos de infraestrutura urbana nas calçadas e em espaços públicos.

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O Calçada Acessível presta assessoria especializada para que cada cidade consiga desenvolver seu manual técnico e criar seus próprios decretos ou leis, atendendo às especificidades regionais. O programa conta com arquitetos e urbanistas que, junto com a equipe técnica das prefeituras locais, oferece orientações sobre quais as melhores alternativas para a cidade.

Em sua Cartilha da Calçada Cidadã, a senadora Mara Gabrilli ressalta que “o direito de ir e vir começa na porta da nossa casa, na calçada. Por isso, os passeios públicos da nossa cidade têm a obrigação de cumprir o seu papel: possibilitar que qualquer cidadão possa transitar com facilidade e segurança“. Assim, transportes, edificações, ruas e demais instrumentos que compõem a cidade precisam passar por transformações e adaptações que promovam a acessibilidade e o acolhimento, com planejamento e implementação de produtos e serviços considerando toda a diversidade humana. E isso tudo precisa ser acompanhado pela maior conscientização dos governantes e dos cidadãos. 

Mudar a perspectiva de maneira global e profunda, permitirá dar continuidade em grade escala ao efeito Curb-Cut, resultando em investimentos pautados pelo bem-estar mais amplo da sociedade. Uma sociedade mais equitativa, justa, segura e, consequentemente, mais saudável, economicamente ativa e próspera.