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Na água, da água e para a água, conheça a maior vila flutuante da África
Maior vila flutuante do continente é modelo de urbanismo socioecológico e estilo de vida sustentável.
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Ana Cecília Panizza em 16 de setembro de 2024 5minutos de leitura
Vila de Ganvie (Foto: Bas Idsinga/ Shutterstock)
Em um lago em Benin, país colonizado pela França e localizado na costa ocidental da África (entre a Linha do Equador e o Trópico de Câncer), vive o povo da água. Esse é o nome dado aos moradores da vila de Ganvie. O apelido partiu dos habitantes da cidade de Cotonou, sede do governo de Benin (a capital é Porto Novo). Como o apelido já sugere, Ganvie não é uma vila qualquer: é flutuante. Na verdade, é a maior vila flutuante da África, uma ilha localizada no Lago Nocué, o maior do país.
Intitulada patrimônio cultural mundial concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Ganvie foi construída no século 17 por habitantes locais, que ergueram ilhas artificiais no lago usando solo do continente. Atualmente, a maior vila flutuante do continente africano tem cerca de 40 mil moradores, que se deslocam exclusivamente por barcos – daí o apelido “Veneza da África”. Por todo o lago há pontes ligando duas ou mais edificações – as interligações servem também como local para ensinar crianças a andar e espaço público de lazer.
As moradias, muitas delas coloridas, foram construídas sobre estacas de madeira de ébano vermelho, que é mais resistente ao clima local (quente e úmido, com pouca chuva). As paredes das casas são feitas de bambu e folhas de palmeira, com telhado de palha. São casas, escolas, restaurantes, bancos, hotéis, mercados e espaços religiosos.
Já os prédios públicos ficam sobre estacas de concreto e blocos de areia. “Suas palafitas adotam, tradicionalmente, técnicas vernaculares e materiais locais, como madeira, bambu, folhas de palmeira, dentre outros. Esses materiais, em geral, decompõem-se no ecossistema aquático, minimizando os impactos ambientais advindos da ocupação humana, contribuindo para a sustentabilidade da vila”, comenta a arquiteta e urbanista Paula Lelis Rabelo Albala. Os materiais usados nas construções são coletados e separados pelos próprios moradores e as estruturas duram de 15 a 20 anos.
Os moradores de Ganvie vivem na água, da água e para a água. Foi sobre as águas que ergueram suas casas. É esse recurso natural que lhes fornece trabalho e comida. E foi ele o fator que ajudou a salvar os antepassados de quem vive hoje na vila. Isso porque, para escapar de serem capturados pelo comércio escravista, especialmente nos séculos 16 e 17, o povo Tofinu, que habitava a região e já exercia atividades ligas á água, fugiu para o meio do Lago Nocué, por ser um lugar de difícil acesso.
O tráfico de escravizados se intensificou na África e Benin foi uma das regiões com mais pessoas sequestradas e vendidas como escravas. Com base nos dados dessas viagens transatlânticas, estima-se que um milhão de pessoas foram levadas para fora do país entre 1670 e 1860. E foi para o Brasil – principalmente Bahia e Rio de Janeiro – que veio a maior parte dos escravizados de toda a África (e de Benin), a partir das operações colonialistas de Portugal. Salvador mantém, desde 1988, a Casa do Benin, museu localizado no Pelourinho que busca refletir sobre a relação entre a Bahia e o país africano.
Por toda a relação da população com a água, as crianças em Ganvie aprendem a remar e a nadar a partir dos seis ou sete anos de idade. A economia da vila se baseia na pesca. Uma das técnicas usadas para a atividade é revestir uma parte do lago com folhas de palmeira. À medida que elas se decompõem, produzem plâncton, que atrai os peixes. Outra fonte de renda, que passou de geração a geração, é a aquacultura, ou seja, produção de animais marinhos: além de peixe, são criados moluscos, crustáceos, anfíbios, répteis e plantas aquáticas.
O perigo do crescimento, desconexão
O turismo tem sido importante atividade para girar a economia de Ganvie, especialmente após 1996, com o reconhecimento da ilha como patrimônio cultural mundial pela UNESCO. Afinal, é grande a curiosidade de viajantes para conhecer a maior vila flutuante da África. Cerca de 10 mil pessoas visitam o local anualmente, o que aumentou os desafios de quem vive em Ganvie diante da falta de sistemas adequados de esgoto e gerenciamento de resíduos, além do aumento da pobreza por conta da inflação resultante do turismo. Tudo isso foi sentido pela população local.
“Nas últimas décadas, com o aumento populacional e do turismo, a vila começou a incorporar materiais modernos, tais como telhas metálicas e estacas de concreto. O uso de tais tecnologias e materiais construtivos dissociam-se dos contextos social e ambiental de Ganvie, podendo trazer desequilíbrios ao local”, pontua Paula, que é pesquisadora nas áreas de sustentabilidades urbana e arquitetônica, mobilidade ativa e acessibilidade. Atualmente, ela é professora substituta na Universidade de Brasília, nas disciplinas de bioclimatismo, conforto térmico, conforto luminoso, urbanismo caminhável e projeto ambiental integrado.
Paula explica que metal e concreto não se decompõem facilmente na natureza, de forma geral. “Além disso, são materiais que possuem um impacto ambiental nas etapas de extração de matéria-prima e produção muito superiores aos dos tradicionais materiais empregados em Ganvie. Isso altera a dinâmica local, interferindo no ciclo dos materiais da vila”.
A arquiteta acrescenta que, além dos prejuízos ambientais, empregar materiais dissociados do local podem levar a uma desconexão das práticas construtivas e saberes locais, alterando a identidade cultural de Ganvie, e, consequentemente, comprometendo a resiliência local frente às condições específicas do lugar. “Para que esse equilíbrio entre ocupação humana e ecossistemas se mantenha equilibrado, existem alguns caminhos possíveis. É necessário um planejamento da expansão da vila, priorizando o uso de materiais tradicionais ou de outros sistemas sustentáveis adequados ao local. Além disso, é fundamental o envolvimento da comunidade, a fim de capacitar a população e preservar os saberes e tradições locais. Adicionalmente, é importante aprimorar o turismo responsável e sustentável na região, de forma a preservar a ocupação e o meio ambiente”, avalia. “Assim, é necessário um olhar atento sobre o processo de expansão de Ganvie, de forma que a vila continue a se manter como uma ocupação resiliente e em equilíbrio com seu contexto local, e que preserve suas heranças cultural e identitária”.
Mesmo em meio a desafios e adversidades, Ganvie pode inspirar outras regiões pelo mundo. É um exemplo sustentável e único que vem do continente mais pobre do planeta. A vida na água influenciou toda a arquitetura e os sistemas urbanos da vila, que exemplifica uma relação direta e harmoniosa entre as pessoas, o trabalho, o estilo de vida e a sustentabilidade, sendo, assim, modelo de urbanismo socioecológico. O povo da água é um grande exemplo de superação, resiliência e valorização dos saberes e das riquezas locais e ancestrais. Diante de sua triste e trágica história ligada à escravidão, a população se reergueu e fundou um novo lar, com respeito pelo lago e cuidado com a água, seu maior bem e sua maior aliada. Não é à toa que o nome escolhido, Ganvie, significa “nós sobrevivemos”, no dialeto local.
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