A arquitetura paisagística deve integrar organicamente a obra construída e seu entorno. Essa é a visão do arquiteto e urbanista Gustavo Garrido que, há 20 anos, tem deixado sua marca em projetos que transitam entre a inovação e a sustentabilidade. Professor na Faculdade Belas Artes de São Paulo, atualmente à frente do escritório Archscape e presidente da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura, regional São Paulo (ASBEA-SP).
Ainda durante a graduação, mergulhou em pesquisas sobre paisagem e ambiente com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científicos e Tecnológico (CNPq), participando do grupo de pesquisa “Quadro do Paisagismo no Brasil (QUAPA)”, que resultou em três publicações: “Paisagismo Contemporâneo”, “Paisagismo Contemporâneo no Brasil” e “História do Paisagismo no Brasil”. Na sucursal brasileira do escritório americano Design Workshop, trabalhou ao lado do arquiteto paisagista Sergio Santana, de quem se tornou sócio até 2010. Nesse período, absorveu a filosofia de criação de espaços que respeitam e valorizam os ecossistemas locais. Na entrevista a seguir, ele compartilha um pouco do seu conhecimento e dessa experiência multifacetada.
Sua trajetória na arquitetura paisagística reflete um compromisso com cidades mais verdes. O que inspirou sua dedicação a esse campo?
Gustavo Garrido: Quando eu entrei no curso de Arquitetura e Urbanismo já sabia que gostava de desenho, tanto à mão livre, quanto geométrico. Ao longo do curso, um professor me convidou para ingressar no Projeto Quapa. Foi através desse projeto que comecei a entender melhor o que é a arquitetura paisagística. Não se trata apenas de plantas, mas de todo o ambiente dos espaços livres, abertos ou parcialmente cobertos, como pavilhões ou pergolados.
Como era a atuação do Quapa?
Gustavo Garrido: Trabalhávamos com bases de dados e mapas de cidades, redesenhando praças e parques de forma padronizada. Isso eliminava a distorção causada pela qualidade do desenho: um projeto de arquitetura paisagística bem desenhado pode parecer melhor do que é, e um mal desenhado pode esconder algo fantástico. Nesse contexto, conheci mais sobre projetos e profissionais, como Rosa Grena Kliass, uma das pioneiras da nossa profissão. Trabalhar com o redesenho do território me despertou para a ideia de que, ao fazer isso, estamos contribuindo diretamente para a qualidade de vida das pessoas. Foi aí que tive certeza de que era isso que eu queria fazer.
Falando em qualidade de vida, como a arquitetura paisagística pode transformar áreas marginalizadas ou degradadas, por exemplo?
Gustavo Garrido: Existem espaços que, quando bem planejados, transformam completamente o ambiente e a relação das pessoas com ele. Ontem mesmo assisti a um documentário sobre a Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. É um lugar com construções históricas, algumas abandonadas, mas que hoje se tornou um ponto turístico importante. Embora questões como segurança sejam fundamentais, quando você aproveita os atributos do espaço livre — como vegetação, pisos bem feitos, equipamentos para bicicletas, muretas e outros elementos bem projetados —, fica evidente que alguém pensou no bem-estar coletivo. Isso cria uma atmosfera de cuidado e pertencimento, o que torna a intervenção urbana algo realmente interessante.
Quando você pega uma área sem qualificação, como um descampado, e planeja seus usos definindo caminhos, espaços para crianças, áreas esportivas ou locais comunitários para festas populares, você cria identidade e estimula a formação de comunidades. Esse é um grande desafio, especialmente em grandes empreendimentos. A disposição das torres, a escolha dos equipamentos e o privilégio dado aos espaços livres impactam diretamente na qualidade de vida. É algo que vai além da estética que, na verdade, é uma consequência do planejamento bem feito. Um espaço abandonado ou mal cuidado desestimula conexões entre as pessoas. Mas quando você o qualifica, com moradias, bares, escolas, restaurantes e áreas de convivência, as pessoas passam a querer ocupar e viver nesse lugar. Tudo isso é essencial para compor um ambiente funcional, bonito e humano.
A urbanização crescente trouxe desafios significativos para as cidades. Como a arquitetura paisagística pode atuar como uma ferramenta para equilibrar a expansão urbana e a sustentabilidade ambiental?
Gustavo Garrido: Hoje enfrentamos grandes problemas urbanos, como enchentes e deslizamentos, que geram tragédias recorrentes ano após ano. Uma solução seria conciliar a preservação de áreas sensíveis, que precisam ser protegidas, com o adensamento de regiões mais seguras e bem localizadas. Isso cria um cenário ideal: além de reduzir transtornos e riscos para as pessoas, as áreas preservadas se tornam espaços desejáveis. Afinal, quem não gostaria de morar em frente a um parque? Um exemplo inspirador vem de Madri, onde vias expressas foram enterradas, as margens dos rios reconstituídas e parques criados. Isso valorizou os imóveis e transformou o local em um espaço agradável e convidativo para os moradores.
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Como isso se dá no Brasil?
Gustavo Garrido: No Brasil a arquitetura paisagística tem um compromisso adicional devido à presença de florestas nativas, como a Mata Atlântica em São Paulo. Trabalhar com espécies nativas, árvores, arbustos e forrações, é essencial para atrair pássaros e outros animais, contribuindo para a biodiversidade urbana. No entanto, esse trabalho exige critério e planejamento. É fundamental que o poder público crie e preserve corredores verdes que conectem áreas naturais, permitindo a manutenção da biodiversidade mesmo nas cidades. Esses espaços, hoje mais comuns em áreas ricas, poderiam ser integrados a toda a cidade, tornando-a mais sustentável, agradável e inclusiva.
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Como você enxerga o potencial dos espaços verdes no planejamento urbano para promover a conscientização ambiental? Você acredita que já existe uma crescente preocupação da população com a preservação desses espaços?
Gustavo Garrido: Acredito que já se estabeleceu uma gradação interessante no planejamento urbano, com áreas que precisam ser intocáveis, como a Serra da Cantareira, em São Paulo. Essas regiões, com declividades acentuadas e mata preservada, não podem ser mexidas. Idealmente, ao lado dessas áreas de preservação permanente, seria interessante ter parques. Esses parques poderiam manter a vegetação nativa e permitir uma presença humana controlada, criando uma área de transição entre as zonas de proteção e as áreas urbanas. Essa gradação seria essencial para uma cidade mais equilibrada, respeitando cursos d’água e o meio ambiente. Felizmente, a sociedade tem se conscientizado disso, e o envolvimento da iniciativa privada, especialmente do setor da construção civil, pode trazer contribuições significativas.
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Teria algum exemplo que reflete essa consciência?
Gustavo Garrido: Vemos exemplos inspiradores de cidades que se transformaram ao adotar conceitos como o de “cidades-esponja“. Seul, na Coreia do Sul, revitalizou cursos d’água e espaços degradados, enquanto a China investe pesado em infraestrutura verde. Esses modelos mostram que é possível repensar a infraestrutura de São Paulo. Precisamos mudar a ideia de que infraestrutura é apenas concreto, ruas e pontes. Grandes obras devem considerar também as pessoas, incluindo ciclovias, passarelas acessíveis e espaços agradáveis para pedestres. Um exemplo interessante disso é o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde passagens suaves conectam o parque às áreas urbanas sem interrupções bruscas. Já temos bons exemplos no Brasil, mas para ampliar essas iniciativas é necessário vontade política e um olhar mais humano para o planejamento urbano.
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O conceito de soluções baseadas na natureza tem ganhado cada vez mais destaque na arquitetura, especialmente com o uso da arquitetura biomimética. Como essas abordagens têm sido integradas à arquitetura paisagística?
Gustavo Garrido: Existem várias soluções interessantes para melhorar o ambiente urbano, como o conceito de cidades-esponja, mas também abordagens em menor escala, como os jardins de chuva. Esses jardins são pequenas áreas, geralmente em calçadas ou terrenos, projetadas para reter temporariamente a água da chuva, ajudando a reduzir enxurradas e enchentes. Essa é uma solução baseada na natureza. Outra prática recomendada é o uso intensivo de herbáceas nativas em vez de gramados extensos, já que estes exigem alta manutenção e grande consumo de água. Restritas a áreas específicas, as gramíneas podem ser mais bem aproveitadas.
Além dessas soluções, uma abordagem que vai ao encontro desse debate é repensar o uso do espaço privado, permitindo maior interação com o público. Exemplos como o Edifício Louveira, em São Paulo, projetado por Vila Nova Artigas, ilustram essa ideia. O edifício é aberto à cidade, sem grades, com passagens acessíveis ao público, promovendo a integração com o entorno. Hoje, legislações que incentivam fachadas ativas e passagens públicas mostram o potencial de criar áreas verdes compartilhadas que beneficiam o bairro como um todo, aumentando a qualidade de vida e a valorização imobiliária. Isso, claro, exige manutenção cuidadosa, segurança discreta e estratégias que evitem arquitetura hostil. Prédios mais generosos com a cidade certamente contribuíram para bairros mais acolhedores e integrados.
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Na era das cidades inteligentes, como a arquitetura e o paisagismo podem dialogar com soluções tecnológicas para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos?
Gustavo Garrido: Acredito que não é necessário usar tecnologias sofisticadas para melhorar os espaços. Por exemplo, sensores de presença para acendimento de luzes são uma solução simples, mas eficaz, que torna o ambiente mais seguro e agradável. Essa tecnologia já é amplamente utilizada e acessível. Além disso, espaços interativos são a grande questão quando se fala em tecnologia no paisagismo. O mais importante é planejar os espaços de forma amigável às pessoas, criando uma paisagem educativa.
No caso da acessibilidade, por exemplo, é possível substituir barreiras físicas, como grades e guarda-corpos, por estratégias mais sutis, como variações de rugosidade no piso para indicar a mudança de rota, o que ajuda pessoas com deficiência visual. Isso contraria a arquitetura hostil, que, além de grades, pode incluir bancos com formatos que impedem as pessoas de deitar. Acredito que a tecnologia não precisa ser pesada para produzir bons resultados. Com soluções simples, é possível criar espaços muito interessantes. Quando falamos de tecnologia, muitas vezes pensamos em máquinas e robôs, mas ela também está no planejamento das soluções sutis.
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Poderia citar alguns exemplos dessas soluções sutis aplicadas em edifícios ou espaços verdes?
Gustavo Garrido: Em edifícios, a parte tecnológica já representa 30% do custo, com sistemas de ar condicionado e automação. Porém, acredito que podemos substituir até 90% dessas soluções com boa arquitetura. No caso dos edifícios, por exemplo, o uso de brises e soluções passivas para controlar a incidência solar pode reduzir a necessidade de ar-condicionado. Em espaços ao ar livre, a questão do conforto térmico também deve ser considerada. Com as ondas de calor cada vez mais intensas, o sombreamento de áreas de lazer é essencial e muito mais barato do que sistemas de pulverização de água, comuns em parques temáticos. Em vez de recorrer a esses sistemas caros, podemos sombrear as áreas com lona, pergolados ou outras soluções duráveis e eficazes.
Então você acredita que, em alguns casos, os princípios fundamentais do design arquitetônico podem substituir a tecnologia?
Gustavo Garrido: Não sou contra a tecnologia, de forma alguma. Sou a favor de usar a boa arquitetura complementada pela tecnologia. Aqui no Brasil temos a arquitetura vernacular, que é baseada em terra, como a taipa de pilão e a taipa de mão. Essas são soluções que, hoje em dia, podem se beneficiar da tecnologia, especialmente no que se refere às soluções baseadas na natureza, que falamos anteriormente. A tecnologia atual permite criar taipas de pilão bem feitas, que podem durar tanto quanto uma parede de concreto, tijolo ou bloco.
É possível combinar soluções baseadas na natureza com a arquitetura convencional? Quais estratégias podem ser adotadas para combinar essas abordagens de maneira harmônica e sustentável?
Gustavo Garrido: Acredito que a chave é identificar onde cada material pode oferecer o melhor desempenho. Por exemplo, no caso da taipa, fazer um prédio inteiro de taipa seria antieconômico. No entanto, em construções com terra, o concreto pode ser usado na base, pois a terra não pode ficar em contato direto com o chão. O concreto é ideal para esse tipo de isolamento, ao invés de usar pedras extraídas para fazer sapatas corridas, como no passado.
Além disso, você pode usar alumínio para as janelas e, no caso das estruturas, a madeira laminada colada é uma excelente opção. Essa tecnologia, embora não seja tão recente, está se popularizando, e a madeira laminada colada pode competir com o aço em termos de resistência e capacidade de vencer grandes vãos. Em resumo, acredito que a solução está em utilizar o melhor de cada material e, principalmente, em como cuidar da interface entre eles, já que os materiais trabalham de maneiras diferentes e suas consequências também variam.
Diante das crescentes preocupações com as emissões de carbono e o impacto ambiental da indústria do concreto, como você vê a importância de fazer escolhas conscientes no planejamento urbano e na construção? Quais alternativas podem ser adotadas para mitigar esses efeitos, tendo em perspectiva a arquitetura paisagística?
Gustavo Garrido: Esse é um grande desafio que a indústria enfrenta hoje em dia. Estamos vivenciando uma escassez de mão de obra nos canteiros de obra, o que leva a indústria a buscar técnicas de industrialização da construção, que, como são feitas hoje, acabam sendo mais caras. Porém, com mais pesquisa e ajustes, incluindo a reforma tributária que pode ajudar a equalizar esses custos, isso pode melhorar. Mas, se não tivermos boa arquitetura e paisagismo, não adianta investir apenas em tecnologia.
Recentemente, em um seminário realizado em Las Vegas sobre a industrialização da construção, o ex-presidente do Royal Institute of British Architects, Ben Derbyshire nos disse que o grande segredo para construir uma comunidade é pensar primeiro no espaço livre. A parte residencial, com suas tipologias – seja vertical ou horizontal – você resolve, mas a forma como essas residências estão dispostas é o que vai fazer a diferença entre criar uma comunidade ou um gueto. Então, acho que temos uma responsabilidade muito grande em formar cidades melhores e não guetos.
Sob a ótica das influências internacionais, você acredita que há algum conceito ou abordagem na arquitetura paisagística que ainda não foi amplamente implementado no Brasil, mas que poderia trazer benefícios significativos para o nosso contexto?
Gustavo Garrido: Um conceito que já está presente no Brasil, mas é priorizado por uma pequena parcela, é o de valorizar o local. Na arquitetura paisagística devemos valorizar o que temos de melhor localmente. Aqui no Brasil, temos o exemplo do Burle Marx, que foi o grande divulgador do paisagismo brasileiro, principalmente com a Mata Atlântica, mas às vezes esquecemos outros biomas que também são parte da nossa identidade.
Por exemplo, alguém pode querer fazer um paisagismo com plantas da Mata Atlântica, mas se está no Centro-Oeste, o bioma ali é o cerrado, não a Mata Atlântica. Então, tentar plantar espécies de regiões com mais água, como costela-de-adão ou maranta, vai resultar em um jardim artificial, que vai consumir muita água em um local seco. O importante é entender o seu ambiente e fazer uma construção que dialogue com ele, seja em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Ceará, na Caatinga ou na Amazônia. Pensar nas características do ambiente e aplicar isso no paisagismo é fundamental.
Como você imagina a cidade do futuro em termos de urbanismo, sustentabilidade e qualidade de vida? Quais são os elementos essenciais para criar um ambiente urbano que seja mais integrado com a natureza, acessível para todos e capaz de atender às necessidades das gerações futuras?
Gustavo Garrido: Seriam desejáveis cidades que sejam ideais para seus habitantes, práticas onde você consiga fazer a maioria das coisas a pé. Cidades seguras, mas ao mesmo tempo permeadas pelo verde do seu bioma, pela vegetação local, permitindo uma maior conexão com o meio ambiente, a fauna e a flora. Seriam cidades que preservam seus recursos naturais. Aqui em São Paulo, por exemplo, temos grandes rios, como o Tietê, o Teixeira Pinheiros e o Tamanduateí, que estão cada vez mais em um estado alarmante. O que eu imagino para o futuro é que possamos ter acesso novamente às margens desses rios, mas como pedestres, não mais como veículos, como acontece hoje, quando mal conseguimos vê-los. Enfim, eu acredito que a cidade do futuro deve ser uma que converse com o seu ambiente natural, seja segura e inspiradora para seus habitantes..